O que os olhos não veem

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Cassian tinha certeza que suas horas estavam contadas naquela masmorra. Que as horas de Nestha também estavam. Se aquelas criaturas voltassem, mesmo Cassian, nascido no calor da batalha, não seria páreo para muitos deles, fraco como estava. Isso feriu seu ego. Era o melhor guerreiro de Prythian, tinha a intenção de continuar sendo, mas, ainda assim, estava preocupado. A fêmea ao lado, entretanto, não parecia ligar para que o aconteceria. Nem ao menos naquele momento ela deixaria de ser teimosa e inflexível. Era uma tortura, aquele silêncio, a espera. Desde a última discussão que tiveram, cerca de meia hora antes, quando ela acordou e ele praticamente quis gritar de alívio.

A sensação era mais forte do que ele. Enquanto a fêmea esguia, linda e impetuosa estava desacordada em seus braços, tudo que sentiu foi desespero e impotência, como se sua própria cabeça doesse com o golpe que ela levou. Como o futuro que Fenrys viu poderia estar certo? Como eles poderiam ter alguma coisa, se Nestha o despreza com toda sua alma?

Ela estava de braços cruzados, olhando para a porta da masmorra, a cabeça encostada na parede de pedra fria, como se fosse um travesseiro muito confortável. Seus olhos estreitos e longos, sob cílios claros como ouro, estavam vazios, cansados.

Cassian, a uma distância segura, se apoiava na parede oposta a porta, onde conseguia ver tudo, inclusive ela, ignorando-o e fazendo um excelente trabalho com isso. Pela pequena grade um pouco acima da cabeça do guerreiro, podia ver que já tinha escurecido. As estrelas indicavam que ainda estavam na Corte Noturna. O clima característico e frio, envolto a pinho e carvalhos também dizia que ainda estavam nas Estepes Illyrianas. Naquelas ruínas que graças a Mãe, não mudaram de lugar, os transportado para outro. Nunca se sabia, os olhos podiam muito bem enganar, e mesmo que o general estivesse acordado quando tudo aconteceu, quando os levaram para lá, nada duvidava que o tal Aengus manipulasse sua visão e sentidos.

— Estive pensando no que disse — murmurou ele. Nestha não se moveu, mas sabia que ela ouvia, a julgar por como sua orelha de ponta delicada mexeu suavemente. — Talvez esteja certa.

Inexpressiva, em voz e rosto, a fêmea respondeu — após uma longa pausa:

— E por que chegou a essa conclusão?

— Porque eu não saberia te amar sem me doar — odiava ser o idiota a dizer isso, mas precisava. Se fossem morrer, ela devia saber, mesmo que risse dele. — Por inteiro, incondicionalmente. Não seria...agradável desejar isso sem que você correspondesse.

— Tem razão — a voz dela ficou rouca. — Não seria.

Foi uma resposta tão simples, mas o destroçou de tantas formas que seu coração latejou, atado as poucas lembranças dela em seus braços. Nos poucos momentos em que ela disse, na linguagem muda, que sentia alguma coisa por ele.

— E agora vamos morrer — finalizou ele.

Nestha inclinou o canto da boca em um sorriso cruel, seus olhos intensos o analisaram.

— Teme a morte, general?

Ele fez que não com a cabeça.

— Não. — Remexendo-se, não tirava os olhos da fêmea ao dizer: — Temo a sua.

Por um milésimo de segundo, achou ter visto algo brilhar nos olhos dela. Algo como vulnerabilidade. Não arriscaria dizer que fosse algo além.

— Bom, eu não — disse ela. — Então não preciso de sua compaixão também.

— Pise mais — desafiou ele, baixinho. — Eu vou me cansar em algum momento.

— Já deveria tê-lo feito.

Cassian entreabriu os lábios, certo de que deveria responder alguma coisa. Deveria, sim, mas o som das dobradiças da porta das masmorras, no fim do corredor, rangeu. Ele se levantou de súbito, caminhando silenciosamente até a grade, sinalizando para que Nestha ficasse onde estava. Obviamente, a fêmea não o obedeceu e se levantou, parando um pouco atrás dele. A porta se escancarou mais, mas como o outro corredor também estava escuro, não podiam ver nada além da tocha que a pessoa — fêmea, percebeu — carregava para baixo, de modo que apenas suas botas ficavam visíveis, além de um sobretudo pálido. A luz cintilava na tocha, ferindo os olhos do general, que se acostumara a escuridão.

Quando ela se aproximou, o cheiro de terra molhada e rosas inundou suas narinas. Ao seu lado, Nestha enrijeceu, as mãos se fechando em punhos tão fortes que os nós dos dedos esbranquiçaram.

Não podia ser. Não mesmo.

— Veio ver o que sua traição nos causou? — disparou Nestha, em um rompante de fúria contida.

Mesmo quando a fêmea na escuridão suspirou e levou a tocha na altura do rosto, Cassian teve dificuldades de acreditar.

Diante deles, estava Elain Archeron, com uma expressão impassível no rosto.

— Mereço sua raiva, Nestha — assumiu a fêmea, parando a um metro da cela.

O sobretudo na altura do joelho que usava era rosa claro com flores bordadas nas lapelas e na gola V firme e elegante, como de camisas sociais. Os cabelos castanho-dourados estavam presos em uma trança de lado e as mãos, delicadamente cobertas em luvas beges, da cor da calça, ornando com uma bota marrom de couro e muito bem feita. Ela parecia tudo, menos maltratada.

Cassian riu do deboche. Nestha o socou com o cotovelo. Aparentemente, a única que podia recriminar a irmã era ela mesma.

— Diga o que quer Elain, não temos a noite toda — falou Nestha, a voz fria como as montanhas da Corte Invernal.

A fêmea hesitou por um instante.

— Tive bons motivos para fazer o que fiz — insistiu na explicação —, apesar de não acreditar em mim.

Desta vez, Cassian estremeceu de surpresa ao ver que Nestha agarrou seu antebraço e apertou com força. Tentou não pensar naqueles dedos esguios afundando em suas costas. Não era o momento, ainda que sua pele sob o couro illyriano formigasse com o toque.

— Não acredito — informou Nestha.

Elain inspirou. Parecia vazia, ao mesmo tempo, segura de si.

— Pode me odiar, mas escute com atenção: o grupo de guardas está prestes a mudar, coloquei um sonífero na água deles. Poderemos passar sem ser percebidos. E temos que aproveitar que Aengus está... — ela engoliu em seco. — Ocupado.

Cassian piscou uma vez, desconfiado.

— Quer nos ajudar — não foi exatamente uma pergunta, mas uma afirmação incrédula.

Os olhos castanhos dela desviaram para ele pela primeira vez.

— Posso ser uma traidora, mas não vou deixar que minha irmã e você apodreçam aqui ou morram.

Nestha contraía os lábios de ódio, mas a declaração de Elain pareceu abalar a fêmea, ainda que minimamente. O maxilar de Nestha estava muito travado, atrelado ao fato de que ela apertou ainda mais o braço de Cassian, fazendo-o entender que deveria responder em seu lugar.

— Suas atitudes recentes são distintas do que fala — começou ele, franzindo o cenho. — Desculpe se não acreditarmos no que diz.

— Mas devem — apressou-se ela. — Devem porque se têm uma chance de sair daqui a hora é agora.

Semicerrando os olhos, Cassian encarou a Archeron do meio.

— Vai nos trair de novo — acusou ele, sem rodeios.

Elain sacudiu a cabeça, mordendo o lábio inferior. Parecia mesmo aflita. Embora, recentemente, descobrira que ela era uma excelente atriz. Contudo, seus olhos eram suplicantes quando ela andou até a cela e ficou diante deles. Parecia mesmo certa que acatariam a ajuda, ou não teria sido burra a ponto de se aproximar de um mortal general e uma fêmea endemoniada com os poderes da própria morte.

— Não vou — garantiu, firme como aço. — Vou tirar vocês daqui.

***

Bônus de hoje, amores! Até quinta :)

Corte de Fogo e GeloOnde histórias criam vida. Descubra agora