5. Capítulo 2 - Preto - 1ª parte

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Capítulo 2 – Preto – 1ª parte


Black de Kari Kimmel


Preto


Echo


Sentei-me ali com as pernas penduradas na beirada da escada de incêndio, inclinada para frente, contra o balaústre de metal e a olhar para a água. Eu realmente não conseguia discernir nada além da cereja vermelha brilhante no final do meu nariz, que queimava e se aprofundava toda vez que eu inalava uma lufada de fumaça. Mesmo que observar as brasas brilhantes não me cegasse temporariamente, tratava-se de uma noite sem lua – não havia muito para ver de qualquer maneira.

A cidade do lado oposto do rio, assim como a que estava atrás de mim era completamente inidentificável contra o céu negro, no entanto eu sabia que ela se encontrava lá. Eu tinha crescido naquela margem do rio, e eu conseguia imaginar o lugar perfeitamente.

Meus pés balançavam para frente e para trás e, depois de tirar o cigarro da boca, bati em um ritmo entediado contra a grade de metal com a mão livre. Depois de um minuto o som me deu déjà vu, e eu pensei que era uma música que eu conhecia. Cantarolei algumas letras na minha cabeça, em uma tentativa de combinar as palavras com a batida ritmada de meus dedos. 'Justificar sua alma? Vender sua alma'? Nenhuma das duas foi satisfatória. 'Alguma coisa, alguma coisa, esperança'.

— Ah, esqueça isso — murmurei para mim mesma e me deixei cair de costas, levando o cigarro aos lábios mais uma vez.

Fazia anos que eu não ouvia nenhuma música de verdade, não era de se admirar que eu não conseguisse me lembrar.

O que eu sentia mais falta ainda do que de música era dos livros. Havia uma biblioteca nas proximidades, entretanto ela estava infestada por Biters. De vez em quando eu encontrava um bom livro em alguma casa ou em uma loja que eu vasculhava. Nessas noites em que tinha tamanha sorte, eu sempre me escondia em um canto, lendo com minha lanterna e me perdia tanto na leitura, que só o cinza do amanhecer poderia me afastar.

Nunca os levava de volta comigo. Eu só conseguia imaginar os outros a fazer comentários maldosos sobre isso.

Eu me contorci contra a superfície ralada em que estava deitada e, quando não consegui me ajustar a uma posição confortável, estiquei a mão por baixo de mim e tirei a 9mm da cintura da minha calça cargo preta folgada. Coloquei-a ao meu lado e sorri.

Agora eu podia olhar para as estrelas com conforto. Não havia muito mais o que fazer depois que o sol havia se posto, e a noite ainda era uma criança. Eu sempre poderia regressar para o complexo e jogar uma partida de pôquer acalorada com os outros, e em algumas horas eu provavelmente estaria entediada o suficiente para que eu o fizesse. Entretanto, por enquanto, como em todas as outras noites, era assim que havia conseguido meu espaço. Eu odiava o complexo e as pessoas que o habitavam.

Era bom poder ver tantas estrelas. Antes da epidemia, as luzes da cidade eram sempre tão brilhantes que não se podia ver uma única estrela. Eu costumava acampar com minha família uma vez por ano, com meus pais e com minhas duas irmãs. Adorávamos ficar longe da cidade, sair na mata para ficarmos sozinhos. Se ao menos eles pudessem me ver agora...

Nunca estive tão sozinha e certamente nunca tinha visto tantas estrelas. Tratava-se de um testemunho de como o mundo havia se tornado verdadeiramente enegrecido.

Permaneci lá deitada por uma boa hora até que o tédio me vencesse. Levantei-me até ficar sentada, coloquei minhas pernas na escada de incêndio, peguei minha arma, a mochila e me ergui. Apesar de não conseguir ver o guidão ou o chão, desci facilmente a escada e saltei os últimos metros até o beco de concreto abaixo, ao aterrissar com um baque silencioso.

Caronte Atraca À Luz Do DiaOnde histórias criam vida. Descubra agora