174. Capítulo 58 - Os Acidentes São o Paraíso - 1ª parte

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Nota da tradutora: chegamos ao último capítulo desta incrível história. Espero que tenham gostado e se emocionado com tudo que Gen, Echo e Dugan viveram até aqui!



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Capítulo 58 – Os acidentes são o paraíso – 1ª parte


Never Let Me Go, de Florence + The Machine


Os acidentes são o paraíso


Genevieve


Ao dar um passo à frente, coloquei o pé de maneira lenta na espessa camada de neve, em uma tentativa de reduzir o barulho que fazia ao romper a crosta congelada. Eu perseguia o primeiro cervo vivo que havia enxergado durante todo o inverno. Eu tinha visto carcaças completamente limpas, algumas até a medula óssea. Os Caçadores eram insaciáveis. Parecia que os Ferais estavam a se modificar em um ritmo mais rápido. Os Caçadores estavam em maior número, eram mais inteligentes e não se importavam em deixar nenhuma caça para os outros: veados, coelhos, esquilos e até predadores como ursos e leões da montanha. A floresta não podia ser estéril, entretanto, tudo que era inteligente o suficiente para evitar os Caçadores era inteligente o suficiente para me evitar também. Mas esse cervo...

Eu já tinha uma flecha na corda do meu arco, no entanto ainda não a havia puxado porque, se o fizesse, minha mão começaria a tremer e o disparo seria anulado. Até mesmo o simples fato de segurar o arco por tanto tempo já havia me causado um leve tremor. Não era apenas o fato de eu estar fraca de fome. Tratava-se de uma cicatriz na parte interna do meu braço. Uma mordida de um caçador que, em vez de me infectar completamente, só prejudicou minha mão direita. Minha mão boa. A força dela não era nem metade da que tinha antes. Eu não conseguia fechá-la ou esticá-la completamente por mais de um ou dois segundos e, se tentasse fazer qualquer coisa precisa com os dedos, como mover os pinos de uma fechadura ou dar um nó, minha mão tremia violentamente demais para continuar a tentar.

Por esse motivo, aprendi a abrir fechaduras com a mão esquerda, a usar minha faca com a mão esquerda e a esticar uma flecha somente quando eu estivesse pronta para atirar, mirando naquela fração de segundo antes de soltá-la. Agora eu a puxei de volta para trás e lutei contra a tensão, porque estava cansada e já a tremer. Quando finalmente soltei a flecha, apesar de não ter passado nem um instante, minha mira se mostrava tão instável que passou rente à nuca do cervo, estilhaçando-se contra a árvore atrás dele, enquanto o animal disparava para a floresta.

Um grunhido frustrado escapou de minha garganta, e um rosnado ainda mais profundo roncou em meu estômago. Eu me sentia faminta. Estava morrendo de fome desde que a primeira geada da estação matou qualquer vegetação comestível, porque não havia mais caça o bastante para capturar, a menos que eu fosse esperta. Correr no piloto automático já não era mais suficiente, mas eu não podia desligá-lo. Eu não faria isso. Eu não faria isso comigo.

Atrás de mim, ouviu-se um baque suave como neve que caía dos galhos de uma árvore. Sabedora do que havia derrubado a neve, tirei outra flecha da aljava e me virei em meus próprios calcanhares enquanto tensionava a corda. Ao ver meu movimento, o Caçador correu para longe de minha vista, desaparecendo no meio da floresta antes que eu pudesse disparar. Ele me seguia há pelo menos duas semanas. Mostrava-se tão faminto como eu, com tanta fome que estava ficando cada vez mais ousado e impaciente. Por causa disso, eu não dormia há duas semanas – nunca mais do que uma piscadela de cada vez, porque se eu fechasse os olhos por muito tempo, o Caçador se aproximava.

Caronte Atraca À Luz Do DiaOnde histórias criam vida. Descubra agora