119. Capítulo 39 - Arrume Suas Coisas - 1ª parte

21 4 40
                                    


Capítulo 39 – Arrume Suas Coisas 1ª parte


Blackbird's Song, de Lee Dewyze


Arrume suas coisas


Dugan


Flashback on – seis anos antes


Meus olhos estavam fechados, mas eu ainda podia imaginar perfeitamente o teto acima de mim. Cada partícula daquela cobertura de pipoca estava queimada na parte de trás de minhas pálpebras. Durante toda a noite e todo o dia, fiquei a olhar para ela. Encarei-a até meus olhos arderem. Olhei até que eles se enchessem de lágrimas que eu achava que não tinha mais. Fiquei a encarar até odiar cada um daqueles malditos grãos de pipoca. O único alívio foi abrir os olhos uma vez mais e descobrir que o sol havia se posto mais uma vez, porque no escuro todos os grãos se confundiam... Embaçados em uma massa de qualquer coisa indistinguível. Vazio, como meu olhar. Como cada soluço de Trish no corredor, chorando e gritando até meus ouvidos doerem. Vazio como o quarto e a cama em que minha filha morta estava deitada.

Eu não queria mais continuar aqui, e agora que estava escuro de novo, nós poderíamos deixar esse lugar mal-assombrado. As molas da pequena cama embaixo de mim rangeram em protesto quando me sentei, deixando meus pés caírem para o lado. Foi preciso um esforço tremendo para ficar de pé, para encontrar o espírito necessário, a vontade e a força. A única razão pela qual isso foi possível foi o intenso desejo de estar em qualquer lugar, menos aqui. Fazia horas que eu não ouvia nenhum som de Trish, porém, quando abri a porta do segundo quarto dessa casa vazia, ela se encontrava sentada no mesmo lugar... Colada ao primeiro degrau da escada no final do corredor.

Parei ao seu lado, sem saber se ela olharia ou não para mim. Ela não tinha olhado para mim quando me movi para o segundo quarto. Agora, seu olhar nunca deixava o ponto em branco da parede à sua frente. Eu desci as escadas a passos largos, parando mais uma vez no final.

— Trish — falei baixinho, com a voz rouca de um dia de silêncio. Engoli em seco à espera de que isso ajudasse, pois não ousava perturbar a quietude limpando a garganta. — Temos que ir.

Seus olhos vermelhos e encharcados caíram sobre mim e ali permaneceram, vazios, e então se moveram para a porta fechada na extremidade oposta do corredor. Quando se voltaram para a parede em frente a ela e ela ainda não havia reconhecido que estava a me ouvir, eu me afastei. Caminhei lentamente até a porta da frente da casa, com minha atenção voltada para a maçaneta. Fiquei a observá-la, imaginava se conseguiria abri-la. Perguntava-me se isso não seria um pesadelo e se sair só nos levaria de volta àquela janela, para uma cama manchada de sangue. Fiquei observando até que Trish finalmente desceu, com sua mochila no lugar, pronta para sair.

Abri a porta e, quando nós saímos para a noite escura, senti uma pontada no coração pelo que deixávamos para trás. E fomos andando. Caminhamos em silêncio, com Trish a ficar quatro passos atrás de mim a cada passo. No tempo que tive para pensar, achei que talvez ela estivesse com raiva de si mesma... Que repassasse o que havia feito continuamente em sua cabeça, assim como eu estaria a repetir 'eu amo você, papai', de maneira repetitiva se meu peito e minha cabeça não estivessem tão desoladamente vazios. Em outras ocasiões, pensei que talvez ela estivesse brava comigo porque eu deveria ter feito isso, entretanto, em vez de ser forte o suficiente, eu a obriguei a fazer isso.

Andamos com um pé na frente do outro, um movimento realizado por nenhuma outra razão que não fosse a única coisa a fazer. Descíamos rua após rua, e no centro de cada uma delas, estávamos preocupados em não sermos vistos. Foi só quando um rosnado feroz veio de um beco próximo que finalmente senti algo. Uma centelha de medo instintivo, de terror pela única pessoa que me restava.

Caronte Atraca À Luz Do DiaOnde histórias criam vida. Descubra agora