O inverno mais rigoroso chegava ao fim, mas as tensões no país, que havia mudado recentemente de governo, ainda estavam intensas o que gerava problemas sérios no abastecimento de alimentos, mesmo nos campos de refugiados que começaram a receber ajuda financeira dos países ocidentais.
Nos primeiros dias que estávamos naquele campo, recebemos comida duas vezes ao dia, algumas vezes por semana. Dividíamos a maior parte do alimento para as crianças e o que sobrava eu e Parisa comíamos. Entretanto, no final de março houve um período de maior de desabastecimento naquela região e a fome tomou conta do acampamento. Como estávamos na área de segunda classe, mal recebíamos alimento para uma refeição. Aquelas pessoas todas entraram em desespero.
Com os dias passando sem alimentos suficientes, as nossas crianças começaram a diminuir a imunidade e muitos deles pegaram doenças. Elas tinham febre constantemente. Muitas crianças começaram a morrer naquela parte do acampamento. Disenterias entre as crianças era algo muito comum.
Da nossa família o primeiro a adoecer foi o Kevin, o filho mais novo de Parisa, que naquela altura tinha seis anos. Ele estava a ficar cada dia mais fraco, a vomitar muito, com febre e também com disenteria. Grande parte da água que recebíamos, passávamos para ele que estava mais fraco, mas como a água não era muito limpa, aquela ação não trazia resultados muito positivos.
- Quando vi que ele estava a piorar muito, fui até o centro de comando daquele campo para tentar falar com o senhor Yousef. Mas, ele não quis me receber. Disse que de nossa família, ele só falaria com Parisa.
- Que homem mais insensível. Afirma Aisha demonstrando braveza em sua fala.
- Então, quando cheguei em casa, falei com Parisa e ela decidiu que iria lá conversar com ele para pedir ajuda. Ela não poderia mais lutar contra os desejos daquele senhor, pois a vida do seu filho estava em risco. Me lembro que Kevin estava deitado durante toda a manhã. Não queríamos acordá-lo porque o sofrimento dele era enorme quando estava lúcido. Antes de ir até aquele homem para pedir perdão pelo que fez, Parisa se aproximou de seu filho, quando percebeu que ele não estava mais a respirar. Ele estava frio. Ela tentou reanimá-lo, mas não foi possível. Kevin estava morto! Afirmou Sônia a chorar de forma ainda mais intensa, quando lágrimas começaram a descer dos olhos de Aisha e ela foi logo a abraçar a amiga, demonstrando sentir muito pelo que aconteceu.
Após aquele relato, Aisha estava indignada. Não era possível que algo tão terrível como aquilo aconteceu em seu país.
- Eu sinto muito que isso tenha acontecido. Eu sinto muito que o nosso estado não foi capaz de proteger as nossas crianças nesse momento tão difícil. Afirmou Aisha.
Sônya continuou a chorar por algum tempo, até que conseguiu se acalmar e começou a dizer mais detalhes das ações seguintes tomadas por elas.
- Tudo que pudemos fazer foi um funeral digno para ele. Pelo menos isso nós conseguimos, com a ajuda de outras famílias descendentes de nossa etnia. Muitos ficaram comovidos com o que aconteceu com a nossa criança, mas o senhor Yousef não. Ele ainda não havia se vingado completamente de Parisa e isso para nós ficou muito claro quando tentei retornar a aquele escritório pedindo ajuda, com mais alimento para não perdermos outros de nossos filhos e, ele, novamente não quis me receber.
- Porque vocês não tentaram mudar de campo? Questiona Aisha.
- Nós até tentamos, mas o campo mais próximo ficava muito distante de onde estávamos e não conseguiríamos andar toda essa distância durante o dia, ainda mais debilitados como estávamos. Se a noite fria chegasse, mesmo com as temperaturas estando mais amenas, e não tivéssemos proteção, todos nós morreríamos. Parisa tentou convencer alguns motoristas que entregavam coisas a nos levar, mas, aqueles profissionais foram avisados por Yousef que Parisa era assunto dele e que não iria deixar que ninguém a levasse embora. Então, aqueles homens, logo desistiam, pois ele era um homem muito influente naquela região. Era irmão de um dos principais políticos daquela província. Tinha muito poder!
- Que situação terrível. Afirma Aisha.
- Depois que passou alguns dias de luto, Parisa entendeu que não teria escolha. Os seus outros filhos também estavam fracos e doentes, bem como os meus, ou ela pediria perdão a aquele senhor ou os nossos outros filhos ou nós mesmas poderíamos ser os próximos a ter o mesmo destino de Kevin. Então, durante a noite, ela foi até aquela casa para conversar com o senhor Yousef. Mas, a coisa não foi bem como a gente imaginava. Ele disse naquela noite que se cansou de esperar e que não a receberia mais, pois a sua paciência havia acabado. Parisa retornou desesperada e chorando muito para a nossa barraca. Em sua mente, não havia mais como sair daquela situação e se continuássemos daquela forma, morreríamos todos de fome. Relata Sônya, enquanto Aisha fica impressionada com a forma terrível que aquele senhor tratava as pessoas que não faziam aquilo que ele ordenava.
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Casamento forçado e abusivo II
General FictionApós passar por muitos percalços em sua história, Aisha consegue finalmente se livrar do seu casamento e tenta construir uma nova vida. Entretanto, os fantasmas do passado a assombram constantemente e ela tem dificuldades de superar os seus diversos...