Pode-se estar preso dentro de si mesmo enquanto seu corpo está livre. Pode-se também estar livre ainda que seu corpo esteja preso.
O primeiro ano de Anahí na cadeia foi infernal. Não pela adaptação, Anahí era uma sobrevivente e conseguia adaptar-se com facilidade às situações e lugares que a vida lhe impunha. Também podia ser manipuladora e ameaçadora o suficiente para não sofrer nas mãos das demais detentas. Isolara-se, no entanto.
Era raro que trocasse uma palavra com alguém. Any não dispunha da paciência necessária para se inserir em qualquer grupo ali. Queria ficar só e apenas isso. E foi esse isolamento que quase a enlouqueceu.Ela lembrava e relembrava a todo o momento a morte de Paul e a despedida de Poncho. Como um vício, trazia aquelas memórias à tona todos os dias, durante todas as horas. Não tentava afastar aqueles fantasmas, ao contrário, fazia questão de invocá-los. E então, se deixava afogar num mar de tristeza que parecia não ter fim.
Anahí não imaginava que seria assim, que deixaria que se perdesse em meio ao tormento que existia dentro dela. Pensava, ao contrário, que aquela cadeia seria a sua redenção. Que se punindo se livraria das suas culpas e conseguiria, enfim, encontrar um pouco de paz. Talvez fosse a morte de Paul que mudara tudo. Talvez ela não estivesse conseguindo lidar com o fato de que seu grande amigo morrera tentando ajudá-la.
Contudo, não é mentira quando dizem que o tempo – e o destino – é um agente poderoso. Passado o primeiro ano, por obra divina talvez, Anahí foi resgatada do abismo mental em que se encontrava. E a luz veio através de outra detenta. Candice.
Aquela senhora não havia tido uma vida fácil. Presa por assalto a mão armada, seguido de morte, já havia perdido 18 anos de sua vida trancafiada. Há pouco mais de um mês de ter a sua liberdade de volta, fora transferida para a penitenciária de Pittsburg, caindo exatamente na cela de Anahí.
Durante todas as manhãs, Candice saudava Any com um bom dia. Sempre sem respostas. Foi assim durante um mês inteiro. No trigésimo segundo dia, no entanto, o papo foi outro.
O sol ainda nem tinha nascido quando Candice despertou e sentou-se na beirada de sua cama.
Candice: É hoje. – Disse, olhando para o teto – Hoje sim será um bom dia.
Anahí, sonolenta, sequer deu ouvidos as palavras daquela mulher. Tanto tempo presa devia tê-la deixado louca, pensou.
Candice: O que você faz aqui? – Questionou. Os olhos sobre Anahí.
Any ergueu a cabeça, procurando alguém com quem aquela senhora pudesse estar falando que não fosse ela.
Candice: Você mesma. – Disse ao notar o gesto – O que faz aqui? – Perguntou outra vez.
Anahí cogitou não responder, mas aquela mulher continuava com os olhos sobre ela, esperando um retorno.
Anahí: Estou pagando pelos meus pecados. – A voz saiu seca e sem esperança.
Candice: E os seus pecados são assim tão graves? – Indagou. Anahí não respondeu. Rolou os olhos, depois os fechou. Tentando abstrair o fato de que aquela senhora estava ali. – Os meus foram bem graves.
Anahí: Eu não estou interessada em saber sobre os seus pecados. – Respondeu sem paciência.
Candice: Mas eu sinto que você precisa saber.
Anahí riu. E iria contestar, mas Candice continuou.
Candice: Eu não era uma pessoa do qual alguém pudesse se orgulhar. Entrei na casa da família que um dia me acolheu, obriguei-os a abrir o cofre, roubei tudo o que havia lá dentro – Contava, pesarosa – E, como se não bastasse, matei o filho do casal. Ele tentou me impedir, então, no calor do momento, o matei.
Any espremeu os olhos, não queria saber das atrocidades que aquela mulher cometera. Conviver com os seus dramas já era o suficiente.
Anahí: Eu realmente não quero saber. – Murmurou.
Candice: É aterrorizante, não é? Mas eu estava desesperada, precisava de dinheiro, tinha um filho doente que dependia de mim.
Anahí: Olha só, não que eu esteja interessada em saber da sua vida – Levantou-se, sentando na cama – Mas não tente justificar os seus atos. Para algumas coisas não há justificativa. – Recriminou.
Candice sorriu.
Candice: Exato, não há justificativa. Mas não podemos viver presos nos erros que cometemos.
Anahí: Mas também não podemos esquecê-los.
Candice: Eu não esqueci. Mas consegui me perdoar. – Anahí a encarou. Os olhos castanhos de Candice carregavam uma esperança que ela não via há tempos. – Quando olho pra você, me vejo. A falta de esperança, a escuridão que existe aí dentro existia em mim também. Eu me torturava todos os dias com as cenas daquele assalto, com a morte daquele rapaz. Era sufocante.
Sim. Era sufocante. Era absurdamente sufocante conviver com todos os traumas que ela tinha, e que pareciam tão amplificados ali dentro, sem as distrações que uma vida fora da cadeia poderia oferecer. Era assustador perceber como seus pensamentos gritavam e a condenavam o tempo todo e como ela não tinha forças para calá-los. Perdendo a batalha muito antes de entrar na luta.
Anahí vacilou, e suspirou. Talvez ela estivesse cansada de toda aquela dor, talvez quisesse acabar com aquele sofrimento, preencher o vazio, mas não conseguia.
Anahí: E como fez pra parar? – Perguntou enfim. Pela primeira vez encarando sua fraqueza, assumindo que precisava de ajuda, porque sozinha ela não podia suportar.
Candice: Parei de viver presa no passado, menina. – Respondeu.
Anahí: Eu não consigo.
Candice caminhou até ela e sentou ao seu lado.
Candice: Consegue. – Garantiu, segurando-lhe as mãos – Porque eu consegui. Eu sei, eu tenho plena consciência de que causei um dano irreparável, mas adquiri a consciência de que o auto-flagelo não mudaria o que aconteceu. Ninguém pode voltar atrás e mudar o passado, mas pode ao menos usar o passado como lição. Que tipo de pessoa eu seria se deixasse o que aconteceu morrer sufocado dentro de mim, num tormento eterno? Que tipo de pessoa você seria? Eu não sei quais erros você cometeu, menina, mas eu fui um monstro. Agora não sou mais. Porque não sou apenas os meus erros, sou a mudança que existiu dentro de mim. Todos esses anos presa me fizeram enxergar que eu também posso construir o bem. Não que isso mude o passado, mas a redenção não está em reviver os nossos erros, e sim em assumi-los e aprender com eles. Você precisa aprender a conviver com os seus erros, menina. Só assim vai saber o que fazer com eles. – Concluiu – Bem... É a minha hora. – Disse, vendo a policial se aproximar da cela.
Anahí sorriu, terna. O primeiro sorriso sincero depois de tanto tempo. Aquelas palavras a haviam atingido. Eram palavras que Paul teria dito a ela. Naquele mesmo tom, com o mesmo cuidado.
Anahí: Boa sorte lá fora. – Desejou – E muito obrigada. Eu acho que você acabou de salvar a minha vida.
E ela, de fato, salvara.
Foi a partir daquele dia que Anahí começou a perceber que era muito maior que qualquer erro que pudesse ter cometido. Que um caminho errado, por piores que tenham sido as consequências, não podia anular quem ela era agora, e, definitivamente, não podia anular a pessoa que ela poderia vir a ser. Errara feio, durante boa parte de sua vida, mas o futuro estava aí, como um livro em branco. Pronto para ter as suas páginas preenchidas. Pronto e sedento por uma nova história. Com caminhos menos pesados e corações mais leves, com mais sorrisos e menos lágrimas. Já culpara-se tempo o suficiente, pagara os danos que causara com uma dor inenarrável, e ainda que jamais fosse esquecer de todo o seu passado, Any merecia se dar uma segunda chance. Porque fora por aquilo que Paul lutara também. E fora por isso, afinal, que ele morrera.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Let Me Go
FanfictionEra só para ser mais um trabalho. Ela o faria, o deixaria e seguiria a sua vida. Autossuficiente demais, fria demais, sádica demais, Anahí Portilla era incapaz de amar qualquer pessoa que não fosse ela mesma. Acontece que o destino adora pre...