Bruno 38

197 22 0
                                    

Eu não queria vê-la ali, daquela forma humilhante, se prestando àquilo. Mas ao mesmo tempo, eu precisava encontrá-la, porque eu não aguentava mais não ter notícias dela, não saber onde ela estava, estar longe dela. Eu precisava encontrá-la para pedir perdão e cuidar dela sem me preocupar com mais nada e ninguém. Mas imaginá-la daquela forma era tão angustiante, tão revoltante, que mais uma vez naquela noite eu sentia um enjoo quase incontrolável. 

Toquei o acelerador com suavidade, deixando que o veículo andasse muito devagar, me dando tempo para buscar, em cada uma daquelas mulheres, algum traço que me fizesse pensar que poderia ser Anne. Uma a uma, elas passavam por mim, algumas se exibindo e jogando charme. A cada centímetro andado meu desespero aumentava, ou porque tinha medo de que a próxima silhueta fosse a dela, ou porque tinha medo de que não fosse. 

Então eu vi. 

A última silhueta antes da esquina, encostada em uma das pilastras, enquanto os cabelos cobriam seu rosto. Aquele corpo parecia ser dela. Aquele jeito de parecer não pertencer àquele lugar parecia ser dela. Mas ela não se vestia daquela forma vulgar...

Finalmente parei o carro diretamente à sua frente, e esperei. A mulher misteriosa parecia se decidir se viria até mim ou não, e eu tentava lutar com minha falta de ar e com as marteladas violentas do meu coração contra o peito. 

Como se tivesse sido dominado por algum tipo de sexto sentido, meu corpo reagiu de forma estranha àquilo tudo, tremendo com tanta força que foi preciso quase toda a concentração que havia em mim para me manter parado.

Eu conhecia bem aquela sensação, aquele nervosismo, aquela fraqueza e total entrega. Eram sensações que apenas a presença de uma certa pessoa conseguia despertar em mim. 

Por isso, antes que a silhueta abaixasse na janela do carona para me encarar de frente, eu sabia que era ela.

Lá estavam eles. 

Por debaixo de uma maquiagem pesada e um semblante indiferente, aqueles conhecidos olhos cor de chocolate que eu simplesmente não conseguia esquecer.

Aquela não parecia ser a garota pela qual eu procurava com tanto desespero, a garota que ultimamente habitava todos os meus sonhos e lembranças. Não parecia ser a garota que eu havia me apaixonado acidentalmente, porque não havia traços da Anne que eu conheci ali. Não havia resquícios dela, a não ser por uma exceção: aqueles olhos. Eu os reconheceria em qualquer lugar, em qualquer situação.

Era ela. Com alguns quilos a menos, uma maquiagem escura e extremamente inapropriada para o seu tom claro de pele, o que tirava bastante de sua beleza natural. Além disso, trajava um vestido incrivelmente curto e justo, seguindo o padrão de todas as mulheres naquela rua, e saltos altos que a deixavam com muitos centímetros a mais. Sua expressão parecia ser vazia enquanto ela abaixava na janela do carona, mas ao realmente me enxergar ali, sua máscara de indiferença pareceu quebrar imediatamente.

Eu fiquei mudo e imóvel, porque não sabia como agir. Vê-la daquele jeito, naquela situação, despertou em mim uma fúria inexplicável, então eu tive que me forçar a manter a calma. Era de alguma forma irracional, mas não havia como evitar a raiva que eu sentia agora. Raiva de tudo e de todos. Raiva dela.

Ainda assim, foi difícil conciliar essa ira com a sensação de alívio que me assolou. Eu realmente havia conseguido encontrá-la, contra todas as chances. Fosse por milagre ou por sorte, ela estava ali, a poucos centímetros de mim, e se não fosse pela raiva que pulava dentro de mim, eu poderia até sorrir.

Não sei quanto tempo ficamos em silêncio, mas algum tempo depois sua expressão voltou a ser a mesma que eu havia visto no primeiro momento. Enquanto ela voltava a ser completamente indiferente a mim, como se eu fosse só mais um cliente a espera de seu preço, eu tentava buscar alguma coisa para dizer a ela. A única coisa que me vinha à cabeça era um pedido de desculpas, tão sincero e desesperado que teria saído como uma súplica, caso meu arrependimento não estivesse sendo abalado pela minha raiva pulsante. Raiva, porque ela ainda não tinha entrado naquele carro e me xingado de qualquer coisa. Raiva porque ela ainda estava disponível para qualquer cliente que quisesse parar ali e escolhê-la pelo preço maior. 

– Cem reais. 

Minha surpresa em ouvir o som da sua voz outra vez, me certificando de que não fazia parte de mais um dos meus inúmeros sonhos com ela, foi substituída imediatamente pelo choque do significado daquela frase. Ela estava cobrando cem reais pelo programa. Cem míseros reais para se vender a mim, ou, o que era pior, a qualquer um que estivesse no meu lugar. Esse era o preço que ela cobrava para deixar um homem tocá-la e tê-la da forma que quisesse: cem reais.

Não sei o tamanho do choque que deixei transparecer em meu rosto, mas não me importei. Aquelas duas palavras haviam me ferido com uma intensidade que eu não imaginava, e me senti ainda pior quando achei ver um sorriso quase imperceptível no canto de sua boca, como se ela quisesse me ferir de verdade com aquilo.

Eu não sabia o que responder. Minha vontade era de gritar com ela, de sacudi-la e perguntar o que diabos ela estava fazendo, e, quando abri a boca para falar qualquer coisa, fui imediatamente interrompido por outra voz, que soava ao meu lado, na janela do motorista. Eu não sabia quem era a mulher próxima a mim, porque não me dei ao trabalho de checar se a conhecia ou não, mas parecia que ela agora falava algo diretamente para mim. O que quer que tenha sido, eu não saberia dizer ao certo, porque o choque das palavras de Anne ainda estava me machucando.

Quando finalmente notei que a pessoa não nos deixaria a sós outra vez, me forcei a desviar os olhos dela, com medo de que simplesmente evaporasse, e me dirigi à mulher ao meu lado.

— Você, cala a boca!

Ela pareceu se indignar com minhas palavras, mas eu não dei a menor importância a isso, porque havia uma outra pessoa ali - a única pessoa que importava - então imediatamente virei-me outra vez para ela, e, ainda com o mesmo tom na voz, falei outra vez.

— E você, entra no carro!

Me arrependi imediatamente por falar com ela da mesma forma que havia falado com aquela mulher, e pediria desculpas por isso também mais tarde, mas, naquele momento, a única coisa na qual eu pensava era tirá-la dali o quanto antes, e mantê-la perto de mim em qualquer lugar longe dos outros. Por isso, nada pude fazer a não ser pisar no acelerador assim que vi Anne bater a porta do carona ao meu lado.

Flashback of.

De repente, amorOnde histórias criam vida. Descubra agora