Anne 8

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– Eu gosto de chuva. - Respondi - Me traz paz. E o cheiro é muito bom. 

Ele sorriu. 

– Acho que você é a única pessoa no mundo que prefere um sábado chuvoso a um sábado ensolarado e quente. 

– Não creio que seja a única. - Concluí meio distraída - Você que não deve conhecer muitas pessoas tão sensíveis como eu. 

Ele me olhou profundamente, mas eu continuei: 

– Quero dizer, é muito fácil gostar de um sábado ensolarado, mas quase ninguém vê a beleza de uma tarde chuvosa. Se as pessoas tentassem ver a real beleza disso aqui... - Olhei em volta, deixando a frase no ar. - Não estou dizendo que não gosto do sol, mas as pessoas parecem se esquecer de que, sem a chuva, o tempo bom seria cansativo. Agente tem que mudar de vez em quando, senão tudo fica muito chato. 

Olhei-o novamente e constatei que ele não simplesmente me olhava: Ele estava me analisando. 

Senti meu rosto corar, conseguindo finalizar meu argumento em um tom de voz mais baixo que antes: 

– Mas ainda prefiro a chuva... 

– Sabe... - Ele começou depois de alguns segundos em silêncio - Acho que agora prefiro a chuva também. Seu olhar era penetrante, e eu comecei e me sentir completamente exposta à aquele olhar. Desviei os olhos, voltando a tentar ler o livro à minha frente. 

– Ainda aquele livro? 

– É. Avancei bastante hoje, já passei da metade. - Respondi. 

– Você lê com um dicionário? 

– Sim. - Pela milionésima vez, corei. Minha mania de corar na frente dele já estava ficando irritante. - Tem algumas palavras... Sabe, difíceis. Eu não entendo, aí eu procuro no dicionário, e então posso continuar lendo. 

– Isso mostra uma grande força de vontade sua, sabia? A maioria das pessoas, quando leem algo que não entendem, simplesmente deixam pra lá. Preferem não entender o trecho de um livro a se mexerem e irem procurar o significado da palavra. 

– Bom, eu entendo menos palavras do que a maioria das pessoas. 

– Hm... Você... Não estudou? 

– Ah, estudei sim. Eu era uma aluna mediana no colégio que estudava. Mas aí eu tive que sair. - Olhei para as mãos. 

– Por quê? Encarei-o novamente. Sua expressão me encorajava a continuar, e pela primeira vez eu pude ver alguém, além de Júlia, genuinamente interessado no que eu tinha a dizer. 

– Bom, eu... Eu tinha dez anos quando meu pai morreu. Levou dois tiros em um assalto. Minha mãe era dona de casa, nunca trabalhou, e nos sustentávamos com dinheiro do meu pai. Ele era policial. Quando ele morreu minha mãe teve que procurar um emprego. Como ela não sabia fazer muita coisa, arranjou um emprego de garçonete. Pagava pouco e exigia muitas horas do dia dela. Então eu tive que sair da escola pra tomar conta da casa. Essas coisas. 

– Eu lamento. Pude ver que ele realmente lamentava. – E sua mãe... - Ele continuou. 

– Morreu há pouco mais de 3 anos. Drogas, álcool, depressão. Essas coisas. Tudo por causa de um infeliz que ela conheceu... 

Suspirei. Falar dela e do meu pai doía. Eu podia sentir a dor com clareza naquele momento, porque era a primeira vez que realmente conversava sobre aquele assunto com alguém. 

– Ela era linda, sabe? Minha mãe. Tinha olhos claros e muito vivos, antes de conhecer aquele filho da puta. E mesmo quando estava triste você podia ver que algo nela iluminava a sua vida. Era como se dentro dela existisse algum tipo de sol. E ela era diferente das outras pessoas. Ela era bonita, bonita por dentro e por fora. 

– Deve haver uma ou duas coisas dela em você. 

Encarei-o e, sem nem saber porquê, sorri. Ele retribuiu o sorriso. 

 – O sorriso dela era tão bonito quanto o seu? 

– Era muito mais bonito. - Falei envergonhada. - Ela não devia ter morrido assim tão jovem. Ainda havia muitas pessoas pra ela iluminar. 

Enxuguei uma lágrima que escorreu pelo meu rosto, me pegando de surpresa. 

– Talvez esse seja o seu papel agora. - Bruno concluiu. Dei um riso triste e abafado. 

– Não acho que possa desempenhar esse papel. Não sou a metade da mulher que ela foi... 

– Você me ilumina. 

Ele disse isso calmamente, e continuou me olhando como se tivesse acabado de me dar bom dia. 

– Há algo em você. Eu notei isso no primeiro dia que te vi. Você é muito diferente de grande parte das mulheres, Ninha. 

– Não sou. É impressão sua. Ninguém é diferente de ninguém. 

– É sim. Todo mundo é diferente. Existem pessoas ordinárias e existem pessoas especiais. É uma pena que você não veja isso. 

– No meu mundo existem apenas pessoas. Elas só se aproximam de você porque têm algum interesse. Ninguém está lá pura e simplesmente pra te ajudar. Você precisa dar algo em troca. 

– Talvez o que elas peçam em troca não seja muito. Talvez seja só uma amizade. 

– Bruno... - Falei, minha voz embargada com uma tristeza que não estava nos meus planos para aquela tarde - Ninguém nunca me pediu só amizade. 

Ele ficou calado. Eu vi em sua expressão que ele não tinha nada que pudesse ser dito para me fazer sentir melhor. Mas isso não era novidade. 

– Você odeia essa vida, não é? - Finalmente perguntou. 

– Você não faz ideia. 

Pela primeira vez ele desviou o olhar, fitando agora suas mãos molhadas. 

– As outras garotas... Elas não ligam. Mas pra você é um castigo. 

Permaneci em silêncio, fitando minhas próprias mãos. 

– Você ganhou minha simpatia de graça, sabe? - Ele continuou - Eu acho você uma pessoa bacana, e conforme o tempo passa, me sinto gostando mais de você. 

Olhei para ele um pouco eufórica. 

– Eu não quero fazer parte disso, Anne. Não sabia que era assim. 

– Eu... - Comecei, mas não sabia o que dizer. 

– Não sei de todos os pecados que você cometeu na vida, mas posso ver que você é uma pessoa boa. E pessoas boas não merecem sofrer. Pelo menos eu gosto de pensar que eu não estou ajudando a tornar a vida delas mais miserável. - Ele me olhou novamente - Não vou fazer mais isso com você. Não vou mais te usar pra tapar os buracos da minha própria vida. Não é justo, e sinto muito ter feito isso até agora. 

Sim, ele devia se desculpar. Sim, ele fazia parte da mediocridade da minha vida, e ajudava a torná-la mais miserável. Ele era um cliente, uma pessoa que me fazia lembrar a cada dia por que eu odiava a minha vida. Mas, ao mesmo tempo, ele era a pessoa que me fazia sentir, a cada dia que passava, um pouco menos infeliz. Uma pessoa que se destacava, que se diferenciava das outras simplesmente por ser do jeito que era, mas também porque se importava comigo. Se importava de verdade.

De repente, amorOnde histórias criam vida. Descubra agora