Anne 38

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Não era a mesma expressão que ele tinha no dia anterior. Por mais severo que ele parecesse agora, seus olhos me mostravam o contrário. Não era pena, compaixão, raiva ou nojo. 

Eu não saberia dizer o que era, mas ele não estava completamente indiferente a mim, e por menor que isso fosse, senti um sopro de vida me tomar de repente. 

– Por que não me acordou?

Fui pega de surpresa pelo som da minha própria voz, e me perguntei quando havia desenvolvido a constrangedora capacidade de pensar em voz alta. 

– Você parecia exausta. 

Sua voz também tinha o tom frio e seco de ontem, mas como não esperava nada diferente daquilo, não me importei. Ao invés disso, me esforcei para pensar em uma boa réplica para dar, mas não consegui nenhuma. 

– Coma o que quiser. - Ele falou, apontando para o lado, e pela primeira vez pude notar a enorme quantidade e variedade de comida ao lado dele. Pães, biscoitos, frutas, sucos, chás e doces estavam espalhados de forma organizada por cima do balcão, enquanto uma cafeteira esquentava o café. 

– Não estou com fome.

Era mentira, eu estava faminta, mas não queria bancar a desesperada na frente dele. 

– Quer ter uma crise de pressão baixa ou de hipoglicemia no meio da rua? Sabe há quanto tempo você está sem comer? 

Me dei conta de que havia muito, muito tempo desde que tinha comido algo pela última vez. Ele não tinha a menor noção disso ao fazer a pergunta, mas ainda assim, estava certo. 

Sem esperar pela minha resposta, ele se levantou e se virou para pegar a cafeteira atrás de si, desviando seu olhar do meu pela primeira vez. Despejou dentro de um copo uma boa quantidade de café e o empurrou discretamente para mim. 

– Senta. 

Sentei-me em um dos três bancos altos que estavam dispostos pelo comprimento do balcão, ficando de frente para ele enquanto era servida de açúcar.

– Obrigada. - Falei em uma voz muito baixa.

Ele não respondeu, e ao invés disso foi novamente para o lado, sentando-se à frente do notebook e se esquecendo da minha presença ali. 

Agradeci por isso, ficando mais à vontade sem que ele estivesse me observando. Era óbvio que isso indicava que, para ele, minha presença ali continuava sendo tão importante quanto a de um grão de poeira, mas ao menos ele não havia me expulsado como imaginei que fosse fazer assim que me visse de pé.

Bebi todo o café e comi três torradas sem recheio algum. 

Não mais que isso. No exato momento em que havia terminado, Bruno fechou seu notebook e se levantou, indo de encontro às suas chaves em cima de uma bancada lateral, o que me fez ter a impressão de que, primeiro, estava ansioso para que eu fosse embora, e segundo, esteve prestando atenção em mim o tempo todo. 

Me senti mal por ter sido o motivo de tê-lo prendido em casa, atrapalhando qualquer que fosse seu compromisso. Desejei profundamente que ele tivesse me mandado embora, no final das contas, ou que eu tivesse acordado mais cedo. 

Mas era tarde para ficar me lamentando.

Me virei e encontrei Bruno já segurando a porta aberta para mim, então me apressei em deixar a cozinha, tentando lembrar se não havia me esquecido de nada. 

Relaxei um pouco ao me dar conta de que havia trazido muito pouca coisa para que algo pudesse ser esquecido. Segui-o quando ele entrou no elevador, mantendo minha cabeça baixa durante todo o percurso da cobertura até o térreo. Quando o elevador finalmente parou, notei que agora estávamos na garagem outra vez, e então eu não sabia para onde ir. Só quando ele alcançou a porta do carona e a manteve aberta para mim, me olhando despreocupadamente enquanto esperava que eu me mexesse, me dei conta de que ele me daria uma carona. 

É claro. A situação era estranha e desconfortável, mas ele era, antes de mais nada, um cavalheiro. Mesmo com sua quase bipolaridade, eu deveria imaginar que ele seria educado naquela ocasião, já que a hostilidade que eu esperava inicialmente não havia se manifestado.

Mais por reflexo do que qualquer outra coisa, me apressei em sentar no banco do carona, e pouco tempo depois saíamos da garagem outra vez. 

Lembrei do dia anterior, quando eu estava naquele mesmo banco e não sabia o que esperar da noite. Agora que tudo havia passado, eu sabia que estava me aproximando da tal despedida que sabia ser necessária. Mesmo que eu tivesse me condicionado a aceitá-la e lidar com ela, eu sabia que não seria assim tão fácil, e só teria a noção exata do estrago que faria em mim quando estivesse vivendo o momento.  

Por hora, eu poderia quase dizer que estava confortável ao seu lado, enquanto as árvores e postes das ruas à nossa volta iam ficando para trás. O silêncio, mesmo ainda sendo desagradável, já não era tão sufocante, e não era como se eu quisesse exigir dele uma posição por tudo o que eu havia lhe confessado na noite anterior. 

Eu não queria ouvir seus argumentos, porque sabia que eles levariam a uma conclusão dolorosa. Eu poderia estar apaixonada por ele, e ele poderia saber disso agora. Mas eu não esperaria nada mais além daqueles dois simples fatos, então não precisava de uma resposta ou uma opinião sobre o assunto. Ele havia aceitado a verdade aparentemente sem se incomodar, o que já era muito. Mas era hora de cada um seguir com as suas vidas, o que no final acabaria acontecendo de qualquer forma. 

Bruno se inclinou para frente e ligou o rádio, então pude ouvir uma música calma e suave cuja melodia era desenvolvida apenas por um piano e nada mais além disso. A gravação não parecia ser profissional, podendo-se escutar um leve ruído ao fundo, mas isso não era o suficiente para tirar a beleza da música. 

Encostei a cabeça no banco e me deixei levar pela tranquilidade e paz que ela transmitia, enquanto tentava esquecer da dor no peito, agora crescente com a aproximação do momento em que eu teria que aceitar o afastamento dele da minha vida. 

– Gosta? 

De repente, amorOnde histórias criam vida. Descubra agora