Anne 39

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Abri os olhos imediatamente, olhando para ele. 

Ele continuava compenetrado na estrada, e eu poderia até dizer que ele não estava falando comigo se não fosse pelos fatos de não haver mais ninguém no carro, de ele não estar com um celular no ouvido e de não ser esquizofrênico para falar sozinho. 

– Sim. - Respondi depois de alguns segundos me certificando de que a palavra tinha realmente sido dirigida a mim. 

– Sou eu. 

Continuei encarando-o, sem entender muito bem. Ele me encarou rapidamente, e falou outra vez. 

– Tocando. Eu toco piano. 

Claro, era do feitio dele saber fazer essas coisas bonitas e que exigiam algum talento especial. Talvez ele também escrevesse poesias ou coisa assim. 

– Ah. É lindo. 

Foram as únicas palavras que consegui dizer, antes de parar de encará-lo como uma psicopata e desviar os olhos dele, voltando à minha posição original. 

– Obrigado. - Falou cordialmente.

Aquilo foi o máximo de interação que houve entre durante todo o percurso. O caminho de volta poderia parecer mais longo se eu levasse em consideração que, agora, ele não corria como um louco, costurando o trânsito como fizera na noite anterior. Mas como eu queria estar na sua presença pelo máximo de tempo possível, não pareceu demorar muito até que finalmente tivéssemos chegado ao meu bairro. 

– Me guie.

Eu não queria que ele soubesse onde eu morava, mas imaginei que meus esforços para convencê-lo a me deixar em qualquer lugar próximo seriam em vão. Por isso, dei algumas poucas instruções a ele, e antes que pudesse me arrepender, já estávamos na minha rua.

– É aqui, obrigada. 

– Você mora em um galpão? - Ele falou, apontando de forma debochada para o portão à nossa frente, no início da rua. 

– Não, é no final da rua. Mas eu vou andando. 

Antes que eu pudesse abrir a porta e sair, ele já havia andado com o carro outra vez. Teria sido mais fácil falar que sim, eu morava em um galpão. 

– Aqui? - Falou, enquanto parava no último prédio antes da esquina. 

– Sim. 

Ouvi o carro sendo desligado, então senti um baque no estômago, mas fiz força para não deixar transparecer. Aquilo seria tanto estranho quanto triste, porque além de não saber como me despedir dele, eu não queria. Mas de qualquer forma, poucas coisas na minha vida haviam sido do jeito que eu queria, então não deveria ser tão difícil a tarefa de deixá-lo.

Não deveria ser tão difícil, exceto pelo fato de que era. Não apenas difícil, mas insuportavelmente doloroso. 

Enquanto eu pensava em algo para dizer, mesmo algo inútil que só servisse como uma última palavra, ele saiu do carro. 

Aparentemente, tudo que ele faria aquele dia me pegaria desprevenida, então fiquei outra vez surpresa com sua atitude, saindo imediatamente do carro para entender o que ele estava fazendo.

Me dei conta de que havia escurecido quase completamente agora, enquanto o seguia para as escadas do prédio em que eu morava. A essa altura, eu já havia parado de tentar prever suas próximas atitudes, porque nenhuma delas condizia com o que eu imaginava. 

Passei por ele enquanto segurava a porta para que eu entrasse, então parei ao pé das escadas, virando-me novamente para encará-lo. 

– Certo... 

– Qual é o andar? 

Afinal de contas, o que ele queria? Subir até o meu apartamento? 

– Sexto. 

– Estou logo atrás de você. 

Era exatamente isso que ele queria.

Mesmo que aquilo fosse diretamente contra a minha vontade, eu estava me deixando levar por uma esperança de que talvez ele resolvesse dizer mais alguma coisa caso eu o desse mais tempo ali. 

Era uma esperança patética, mas ainda assim, virei outra vez para as escadas e comecei a subir, permitindo-o ficar um pouco mais. Mesmo que no final das contas isso só tornasse tudo pior.

Eu subia cada lance de escada pensando no que exatamente ele faria ao chegar no meu apartamento. 

Ele não parecia muito curioso na noite passada com meu modo de vida, então não havia como imaginar o que ele queria de mim.

De repente, amorOnde histórias criam vida. Descubra agora