Anne 44

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Seu sono tranquilo foi interrompido por um suspiro profundo. Seu braço abandonou minha barriga e ele se virou de lado, agora ocupando todo o espaço vazio do seu lado da cama. Continuei encarando-o, tentando imaginar como eu deveria agir, o que exatamente eu deveria fazer. Não pude chegar a conclusão alguma, porque enquanto meu lado racional - e sensato - dizia para que eu saísse de lá o quanto antes e retomasse minha vida antiga, a única coisa que me dava alguma garantia sobre alguma coisa, meu lado completamente apaixonado e ingênuo me mantinha ali, dizendo que de alguma forma as coisas se resolveriam sem que eu tivesse que deixá-lo outra vez. 

Mas como essa situação poderia se resolver? As coisas acabariam mal, assim como a primeira vez em que nossas vidas se encontraram. 

E assim como na primeira vez, eu me via atada, não me restando mais nada a não ser esperar até que tudo ruísse outra vez.

Me levantei com cuidado, não querendo que Bruno sentisse alguma mudança e acordasse. 

Eu não queria ter que lidar com a misteriosa relação que surgiria entre nós a partir daquele dia. Não queria ter que ver em seus olhos a dúvida que eu sabia que, cedo ou tarde, surgiria. Não queria ter que encará-lo outra vez e sentir medo de perder o que, na verdade, eu nunca tive. 

Recolhi do chão a calcinha e o casaco que estiveram no meu corpo pelo menos por alguns minutos na noite anterior. Dando uma última olhada para verificar se ele ainda estava dormindo, saí e fechei a porta atrás de mim. 

Rumei para o quarto onde estavam meus pertences, ainda empacotados. Procurei por um short confortável e uma calcinha limpa, descartando a que trazia na mão na mochila com as roupas sujas. Peguei também minha escova de dentes e caminhei para o banheiro daquele quarto, feliz por não ter que usar o do quarto onde Bruno dormia e correndo o risco de acordá-lo. 

Tomei um banho demorado, sentindo o aroma agradável do sabonete e dos shampoos caros que estavam ali. Escovei os dentes e me penteei, tentando ignorar meus hematomas hoje mais visíveis. Ainda assim, sabia que aquela vez tinha sido mais sutil que a anterior, porque eu sentia menos dores e não via nenhuma nova marca pelo corpo. Todas as que estavam lá haviam sido feitas por Bruno na noite do nosso reencontro. 

Saí do banheiro muito atenta a qualquer barulho que pudesse identificar que eu não era a única pessoa acordada naquela casa. Não escutando nada, segui para a cozinha.

Não queria parecer mal educada ou abusada de alguma forma, mas o fato era que eu estava absurdamente faminta. Durante muito tempo, minha alimentação foi prejudicada pelo meu estado vegetativo, mas eram as últimas horas praticamente em jejum que faziam com que meu estômago estivesse quase se auto digerindo. 

Tentando não mexer em muita coisa, apenas me servi de um copo de leite e fiz um sanduíche que consistia em pão, manteiga e peito de peru. Ao terminar meu café da manhã, notei que nem metade da minha fome havia sido saciada, mas pelo menos eu não desmaiaria por falta de sais minerais no corpo.

Lavei a louça usada e voltei ao quarto de hóspedes, por fim planejando o que eu faria, pelo menos por hora. Depositei todas as malas e bolsas em cima da cama e as abri, revelando todo o tipo de coisas que trouxera comigo.

Comecei com a mala maior, tirando de lá algumas roupas dobradas e separando uma a uma em duas pilhas: As roupas que eu continuaria usando, e as que não usaria mais. Não que eu soubesse o que aconteceria comigo a partir daquele momento, mas me deixei aproveitar a opção de talvez não precisar mais usar algumas daquelas peças, as quais muitas vezes tive que vestir para o "trabalho". 

Bruno havia me dito que eu moraria ali, com ele. O problema era que eu esperava pelo dia em que ele fosse se arrepender e resolvesse se dar conta de que, na verdade, aquela não havia sido uma boa ideia Por isso, aquelas roupas que agora formavam uma pilha de vestes vulgares e inapropriadas, incluindo lingeries, não seriam exatamente descartadas. Apenas ficariam guardas no fundo de alguma bolsa.

Outra vez, me lembrei da noite anterior. Suas palavras pareciam tão sinceras, suas declarações aparentavam ser tão verdadeiras, que meu coração se encheu de uma discreta alegria novamente. Mas eu estava cética quanto àquilo, mesmo que desacreditar em suas palavras me machucasse, então além de esperar, eu começava a nutrir uma quase certeza de que um dia ele voltaria a ver que eu nunca havia deixado de ser apenas uma garota de programa.

Eu havia acabado minha tarefa. Não foi difícil separar tudo que um dia eu odiei das minhas roupas casuais, e no fundo eu sentia um discreto mas inegável alívio em deixar o que não me servia mais no canto mais escuro e esquecido do quarto de hóspedes. O pedido de Bruno para que eu não usasse mais nada daquilo foi apenas o gatilho para que eu mesma tivesse a atitude de tentar esquecer de tudo que fez parte da parte mais nojenta da minha vida. 

Não havia como não ver aquelas coisas como um tipo de uniforme, então era óbvio que nós dois concordávamos com a escolha de deixar no passado tudo que pertencia a ele.

Agora, sem saber o que fazer, eu fitava o teto do quarto sem interesse, deitada de costas na cama, enquanto tentava pôr meus pensamentos em ordem. Me perguntei até quando ficaríamos em silêncio um com o outro, evitando olhares e toques, como se isso pudesse cancelar a carga de sensações que viajava entre nós. Até quando ficaríamos em cômodos diferentes para evitar a presença um do outro, até quando aquele relacionamento - fosse ele o que fosse, eu não saberia dizer - se sustentaria sem nenhum conforto entre as partes. 

Eu devia ir embora... Essa situação não vai ficar melhor... Tudo está muito estranho entre nós, talvez isso nunca mude... 

– Licença... 

De repente, amorOnde histórias criam vida. Descubra agora