110- Os Cuthbert-Blythe

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❝𝐍𝐀𝐑𝐑𝐀𝐃𝐎𝐑𝐀 | ♛♚
O som abafado do chuveiro era como uma vaga lembrança, longe demais para se alcançar, presente demais para se ignorar.

   O homem teve o cuidado de fechar a porta do quarto com sutileza, retirando com os próprios pés o seu sapato oxford de couro preto que reluziu a baixa luz amarelada do abajur naquele breu iluminado apenas por ela e pela fresta de onde vinha o som do chuveiro.

   Caminhou condizente com o silêncio do quarto, desfazendo a sua gravata, mas não deixando de olhar a porta daquele banheiro, ponderando se aquela escuridão era falta de iluminação ou apenas as sombras que foram lavadas naquela água.

   Fez seus passos serem ouvidos apenas no ponto dela não assustar-se, adentrando com cuidado o local onde a luz poderia ter incomodado o seu olhar, mas, o que o deixou desconfortável, na realidade, foi o justo som do chuveiro. O barulho continuo daquelas fortes pancadas de pingos no chão, como pedregulhos caindo sobre o piso e sobre ela, como se estivessem apenas se compadecendo com quem molhavam e expressando seus sentimentos.

Gilbert encontrou seu paletó do avesso em cima da larga pia, com as pequenas manchas avermelhadas na região dos braço e um filete na área do pescoço, mas apenas observou esse detalhe de longe enquanto caminhava até o chuveiro, onde a encontrou abraçando seu próprio corpo, com os olhos fechados permitindo que a água precipitasse por seu rosto e levasse junto a pouca quantidade de sangue que sobrou das feridas, o qual diluía-se pelo piso e sumia pelo ralo em um redemoinho, como se nunca tivesse existido.

Blythe observou a cena calado como quem jamais aprendeu a falar, mas, parecendo ter presenciado a dor daqueles machucados em sua alma, padeceu aquele impulso que fazia seu sangue fervilhar por seu corpo como várias formigas querendo que ele fosse fazer justiça, e o conteve ao apenas entrar no box com cuidado.

Pela primeira vez desde que ouviu a presença de seu marido no recinto, Anne abriu seus olhos que estavam úmidos de maneiras distintas ao mesmo tempo que conjuntas, e viu a água molhando a blusa social branca que tornou-se grudenta em seu corpo assim como as ondas de seu cabelo desfizeram-se sobre sua testa enquanto ele apenas a observava, como se aquela água sempre estivesse tido em contato com sua pele.

Gilbert apenas avançou seus cuidadosos dedos pelos fios rubros que decaiam encharcados pelo corpo que pareceu definhar na proteção que ela havia criado para si própria, os pondo para frente de um de seus ombros e finalizando esse delicado ato com a mão em sua nuca, a trazendo silenciosamente para perto e envolvendo seu corpo em um zeloso abraço.

   Por bons instante, Anne não retribuiu, apenas mantendo-se estática entre os braços dele. Nenhuma lágrima foi derramada ou pecado confessado, mas ela inspirou a fragrância de hortelã e expirou aquele perfume que a trazia lembranças de sua casa, de sua cama, de suas crianças e seus sorrisos quando ele brincava com elas, e cuidadosamente circundou o corpo de seu marido, muito mais do que em retribuição, mas sim em busca de abrigo, em busca daquele pedaço de sua casa.

   Quando sentiu os dedos amorosos acariciando seu cabelo e os lábios gentis deixando um beijo cuidadoso no topo de sua cabeça, Anne esperou que ele tivesse entendido.

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— Isso vai arder um pouco. — a voz de seu marido avisou concentrada. —

Anne, mesmo com sua cabeça inclinada para o chão, conseguiu observar pelo espelho ele retirar algum resto de fios ruivos que atrapalhavam o seu trabalho, sentindo dedos precisos passando em uma lentidão cirúrgica a pomada que a trouxe apenas um crispar de lábios ao sentir sua pele absorver como se fosse uma labareda de fogo.

Road Trip III - Shirbert e Anne with an EOnde histórias criam vida. Descubra agora