Capítulo Cento e Cinco

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Aqui estou, mais um dia

Sob o olhar sanguinário do vigia

Racionais MC's – Diário de um Detento


Se o Café ainda tava gritando pra eu me abaixar, por alguma razão, eu não tava escutando mais. Foi como se o mundo tivesse sumido à minha volta. Ali, só havia eu e o buraco escuro do ferro bem na minha testa.

O guarda chegou mais perto de mim, a testa brilhando sob o quepe. Naquele dia, eu tinha visto ele dentro da Casa, ajudando a empilhar as caixas, lembro até de ter achado graça do jeito tímido com o qual ele se comportou, totalmente diferente do que eu via ali. Ele tinha os olhos apertados, focados, parecendo pronto pra qualquer eventualidade.

Fiquei tão... absorto, sei lá, de me ver envolvido numa situação daquelas que nem soube afirmar se era uma escopeta mesmo que ele tava apontando pra mim.

— Você não tá preso. O quê que 'cê tá fazendo aqui? — ele falou, a voz suave demais diante da bagunça que permeava o nosso redor.

Virei minha cabeça pra esquerda, para onde os outros agentes do choque gritavam com os detentos, mandando eles se deitarem, mesmo após terem baleado alguns deles, agora caídos, o sangue parecendo meio rosado contra a luz forte do dia.

— Olha pra mim, porra! — ele exclamou, sacudindo o bagulho na minha frente. — Foco, caralho. O quê que 'cê tá fazendo aqui?

— Eu tô só resolvendo uma treta pessoal minha — falei, a voz fraca.

Ele suspirou, mas continuou a me olhar, me mantendo bem no centro da mira dele. Me olhava como se tivesse pensando no que faria comigo.

— Vem comigo — decidiu. — Mão pra trás e me segue, sem pergunta, sem papo.

E sem esperar, ele se virou na direção dos corredores e seguiu caminho, a arma pronta pra qualquer ocasião.

Dei dois passos e parei...

Eu começava a sentir que minha cabeça tava voltando ao lugar.

Olhei pra trás e vi o Café, deitado de bruços, as mãos nas costas. Nem olhando pra mim ele tava.

Mano, eu não quero acreditar que é isso que tá acontecendo aqui, pensei.

— Peraí, ele tá comigo — falei pro guarda que se virou numa raiva do caralho; a ira pulsava dos olhos dele e até esperei tomar uma coronhada, mas ele apenas olhou pro chão, pensou dois segundos e falou:

— Levanta ele, então, porra! E vamo' logo que não tem tempo pra brincadeira.

— Levanta, Café — fui até ele, apressado. — Vamo' logo, caralho.

Aproveitando o momento, Café se ergueu em dois tempos e seguiu atrás de mim, com as mãos nas costas como o guarda tinha falado.

Eu ouvia gritos e disparos por toda a minha volta.

Devia ser daquele jeito em uma guerra de verdade.

Policiais do choque pra tudo quanto é lado e um cheiro de pólvora misturado com ferro que tava deixando meu nariz doente.

E por alguma razão, quando saímos do pátio e adentramos o interior do presídio, através dos corredores, tudo pareceu piorar, mano. Beleza que muitos poderiam dizer que vinte e dois anos era tempo demais pra eu poder usar como exemplo, mas vai por mim, aquele tipo de experiência você não esquece; aquele tipo de experiência permanece vívida em sua cabeça como muitas coisas recentes não eram capazes de permanecer. Eu me lembrava bem demais dos gritos distantes, o brilho do fogo ao longe e aquela sensação maldita que impregnava o ar e fazia meu peito adormecer, com a impressão de que a qualquer momento, uma desgraça me aconteceria e eu seria um dos tantos que haviam morrido naquela noite.

DeclínioOnde histórias criam vida. Descubra agora