Parte III

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Sinto como se estivesse sonhando

Rüfüs Du Sol - Innerbloom


Agora que eu paro pra pensar, eu vejo graça, irmão

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Agora que eu paro pra pensar, eu vejo graça, irmão...

Eu vejo graça que, após toda essa loucura que foi a minha vida até aqui, eu nunca tinha parado pra pensar — de verdade — no fim.

Tá ligado, pensar, mas pensar mesmo. Refletir, tentar entender... sentir na sua pele o que é o fim. Quando realmente acaba.

Porque, mano... quando eu paro pra pensar nisso, não me parece que faz sentido, sinceramente. Parece que é contra a natureza e a ordem das coisas, tá ligado? De certa forma, nada termina de verdade. Tudo a nossa volta, seja o tempo, as coisas, o espaço, nada chega a um fim definitivo. Não que eu esteja pensando nisso pra tentar me confortar e crer que há algo mais depois disso tudo, porque, na moral, pensar que fechou os olhos, acabou, assusta, irmão. 'Cê é louco... mas é que... tudo me parece circular, sem um fim de verdade. É meio que a nossa percepção de continuidade. A gente enxerga a vida saindo do ponto a e indo pro ponto b. Meio que não encaixa na nossa cabeça a possibilidade de que dá pra partir do ponto z pro ponto a, mas é assim que as coisas me parecem quando eu paro pra pensar...

Um animal cresce, vive, passa seus genes adiante; às vezes, não consegue, porque morre no meio do caminho, mas seja qual for as circunstâncias da sua morte, seu corpo não acaba de verdade. Ou ele é decomposto pelas larvas na terra, reabsorvido pelas raízes ou simplesmente serve de alimentação pra outro animal e vai seguindo adiante e adiante e adiante e adiante, infinitamente... e isso se repete não só com o corpo dos seres vivos, mas com outras substâncias que não estão vivas também. E aí eu penso... se as coisas que são materiais não chegam a um fim definitivo; elas não desaparecem, elas se transformam, por que isso não pode servir pra nossa consciência ou sei lá que porra que tá dentro das nossas cabeças? No que será que nos transformamos depois que essa forma chegar ao seu prazo de validade...?

Meu pai dizia que ficamos reflexivos demais à medida que vamos envelhecendo e quero acreditar nisso, mano. Quero acreditar que estou finalmente pensando nessa porra — o fim —, porque tô ficando velho e não porque a situação chegou a um ponto tão do caralho que parece ser o único caminho pelo qual posso seguir.

Nem naquelas rebeliões da FEBEM, nem durante o Salve Geral, nem durante minhas madrugadas nas estradas, pronto pra emboscar um caminhoneiro, nem durante as inúmeras tretas que me assolaram desde que me tenho por gente.

Mesmo depois de tudo isso, eu ainda não tinha sentido o toque do fim sobre meus ombros. Mas agora...

Eu queria poder culpar a sina do pó...

Eu queria...

Só que toda vez que o pó entrava nas veias, por mais que já não me entorpecesse como antes, eu ainda sentia aquele véu opaco sobre a minha visão que distorcia minha concepção das coisas.

Mas essa sensação... essa sensação fria de que o fim da linha tá vindo na minha direção... maluco, essa é a sensação mais clara e intensa que já senti na minha vida.

É isso, porra.

Uma hora chega.

Sei que chegou, mas não sei o que vai ser.

Ninguém nunca sabe.

Sei, pelo menos, no entanto, que aconteça o que acontecer, eu vou garantir que meu moleque vai ficar bem e ainda mais do que sei disso, sei, sinto aqui no meu peito, na minha razão, que ele vai ficar bem. Que tudo vai dar certo pra ele.

V.

DeclínioOnde histórias criam vida. Descubra agora