Capítulo Cento e Quarenta

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Eu vim para contar

Los Zafiros – He Venido


Eu fui o primeiro.

E fiz questão de acertar a primeira paulada na fuça daquele arrombado.

Ele girou e foi ao chão e aí veio uma sequência de flashs. Sem sincronia nenhuma, era eu levantando o braço pra pegar impulso e descer mais uma, já tinha outra paulada caindo.

E foi engraçado.

Engraçado porque ele mais parecia uma criança no chão, meio encolhido, fazendo o impossível pra se proteger das pancadas — pelo menos, acho que tava tentando evitar algum tipo de machucado mais sério, como na cabeça e no saco —, mas os caras, apesar da euforia que eu sabia que vinha numa situação daquelas, tavam mantendo o bom senso.

Eu até tinha reparado no olhar de reprovação que o Café jogou pra cima de mim quando eu acertei a primeira porrada na cara dele, mas nem me importei. Eu tava no meu direito de me exceder.

E antes que possa parecer puro sadismo da parte dos caras que, até onde eu sabia, nem tinham motivo pra ter raiva do Josué, a verdade é que sim: quando você se vê nessa situação de agredir alguém por quem você não sente nada, vem aquela sensação ruim de que aquilo não está certo; que você tá sendo um filho-da-puta machucando alguém que não te fez nada; que tá fazendo alguém sofrer de graça, mas isso só no começo. Só no começo mesmo. E aquilo apenas ressaltava na minha cabeça uma ideia que eu já tinha bem esclarecida pra mim há tempo: o ser humano é um bicho meio quebrado, até meio doente, eu diria, porque essa sensação de compunção logo era substituída pelo frenesi de tá ali, gastando sua força, sua energia, descendo o cacete em alguém, e isso só ia alimentando um bagulho ruim que — eu acho — que todos tinham em uma certa quantia dentro de si. De repente, seu subconsciente se lembra daquele desaforo, daquela humilhação, e não, nem chega perto de te aliviar dessas lembranças amargas, mas parece que se usa esse ódio mal resolvido no momento e você faz merda, e se entrega... e quanto mais tempo você passa nessa vida, mas fácil fica se habituar com isso.

Que merda...

Mas é como eu tava dizendo: refletir sobre essa questão não me aliviou nem um pouco da ira que eu nutria contra o Josué, e eu tive plena certeza que, de todos ali, fui eu quem mais bati e com mais força. Tanta que no meio do caminho, o pedaço de madeira que eu segurava se quebrou e não demorou nada pra que eu descolasse outro e seguisse batendo e batendo, já vendo os rastros de vermelho, distorcidos pela pancadaria, tomarem a minha visão.

Ah, como aquilo foi bom, mano.

Eu precisava — desesperadamente — botar aquela ira pra fora, se não, mais cedo ou mais tarde, eu me sufocaria com ela.

Bati até cansar, até não sentir direito meus braços.

E de uma vez em mil, eu meio que entendi aquele papo do Adriano da sensação de bem-estar que vem depois de malhar — quer dizer, depois de já estar acostumado a malhar. — Por um segundo, até considerei a ideia de entrar numa academia, mas sabendo que o Café não me permitiria empalar o Josué num mastro e usá-lo como saco de pancada, desisti da ideia rapidão.

E me deu ainda mais satisfação quando praticamente todos ali entenderam que era pra parar e se afastaram quase que ao mesmo tempo, deixando aquele arrombado do caralho no chão, sem forças pra se levantar.

Ele bem que tinha tentado meter bronca de bonzão e não soltar um pio enquanto descíamos o cacete nele, só que o corpo tem suas próprias vontades e foi gostoso demais ouvir os ruídos feios pra caralho que ele fazia quando a dor era demais pra ser engolida.

DeclínioOnde histórias criam vida. Descubra agora