Capítulo Oitenta e Três

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— E aí, Alemão — me cumprimentou o Torquato assim que eu passei por ele no pátio; eu nem tinha me ligado que ele tava por ali.

O Torquato era assim.

O mano parecia até ser a sombra da Fundação; tava sempre pelos cantos, mais ligeiro ao fluxo do bagulho do que os próprios monitores; o que era uma coisa que eu queria muito querer saber mais, mas nessas semanas — meses, se pá — que eu já tava por ali, tinha aprendido que muitas — se não a maioria — das coisas, não se perguntavam. Ainda mais de alguém com menos tempo de internação como eu, pra alguém mais veterano como o Torquato.

E dava pra ver de longe que o Torquato era um cara experiente.

Ele já tava perto dos dezoito, era moreno, meio pardo, tá ligado? Aquele tom bem brasileiro que a gente não considera negro nem branco — na verdade, essa nem era exatamente a minha opinião, mas eu tinha escutado de um dos monitores que aquela cor parecia ser a bandeira da Febem e eu não podia negar; tá ligado, seis entre dez dos moleques que tavam por ali tinham aquela cor. Só que o Torquato era diferente ao seu modo; ele parecia muito mais velho do que era. Tinha o rosto muito bem definido, o maxilar quadrado e até uma sombra de barba crescendo e os olhos... mano, ele tinha aqueles olhos meio apertados, de quem parece que é ruim mesmo, sabe? Aquela cara fechada... só que, comigo, ele era gente boa.

Nos primeiros dias, eu até procurava pra ver onde ele tava pra não ficar sozinho com a cara pra cima, mas eu não quis bancar o emocionado e fui fazendo isso mais na moralzinha no decorrer dos dias.

— 'Cê tá sempre me chamando de Alemão, mano — falei pra ele, me encostando na parede ao lado dele. — Desde o primeiro dia que 'cê veio falar comigo. Por que?

— Ah, mano... tu é branquinho, cabelo meio claro, até o olho é meio azul, ó — ele sorriu de canto pra mim. — Todo alemãozinho, rapá.

Aí, mais lá pra perto dos corredores, eu vi o satanás do Pulga passando com o bonde dele.

Essa era outra coisa que me deixava curioso pra porra sobre o Torquato — que, ao contrário do meu apelido, eu não fazia ideia de onde vinha o dele, já que ele se chamava Deberson e não tinha "Torquato" no sobrenome —; ele não tinha um bonde, um grupinho que nem os outros moleques, mas eu sentia que todos eles tinham um grande respeito por ele... sei lá, mano, um respeito que beirava o medo, tá ligado?

— Mas eu tô gostando de ver, Alemão — ele falou. — Tu pegou rápido todas as regras da casa aí, que eu te passei. Não é todo menor que entra aqui e tem a visão das coisas que você tem.

— Eu tô ligado — falei, observando ele acender um cigarro do meu lado. Eu já tinha aprendido como o bagulho funcionava ali dentro, mas era sempre no automático; era eu ver um deles fazendo alguma coisa fora do normal que eu olhava pro monitor que tivesse mais perto de uma só vez.

— Que nem aquela fita do moleque lá, o cabeção, que ratiou o cigarro do mano do vinte e sete... você tava na hora; você viu como foi, não viu?

Fiquei tenso.

Eu não podia mentir pro Torquato. Ele era praticamente o único ali que eu sentia uma certa segurança.

— Vi.

— Precisa ficar meio pá de falar os bagulho pra mim não, Alemão — ele disse, de olho em alguém que eu não soube dizer quem era. Me ofereceu o cigarro e peguei... eu tava... me acostumando com o bagulho, mas eu tinha que falar que gostava e muito da sensação de calma que me passava a cada tragada. O que minha mãe ia falar se soubesse que eu tô fumando? Só tenho treze... pensei, mas minha cabeça me devolveu na sequência: e aí? Eu vim pra cá por causa de bebida...

DeclínioOnde histórias criam vida. Descubra agora