Capítulo Vinte e Três

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Assim que o Tesoura virou no acesso da Marginal para entrar na Ponte dos Remédios, eu me toquei pra onde estávamos indo.

— Peraí... — falei, relanceando o nome na placa verde. — A gente tá indo pra Ceagesp?

Tesoura sorriu discretamente.

— E tem lugar melhor pra resolver essa fita?

— Que porra é essa, Tesoura? Uma coisa é descarregar o bagulho lá como fizemos esses dias atrás, outra bem diferente é carregar os caminhões à luz do dia, com todo o movimento que tem naquela porra.

— Relaxa, grandão — ele falou, em tom de conversa. — Pode ficar tranquilo que tá tudo sob a mão do grande Lisboa.

— O que? — não acreditei. — Como assim?

— Lá é Ceagesp, filhão. Quem melhor pra organizar o lugar do que ele que é o governador? Você tinha que ver e vai quando a gente chegar lá. O cara pegou toda a programação do dia, ajeitou o pessoal por lá de maneira que ninguém que não tenha a ver com o esquema vai sequer chegar a dez metros do bagulho. Então, relaxa, meu compadre.

— Me pede qualquer coisa agora, mano, mas não me pede pra relaxar porque não tem como — acendi um cigarro tentando dissipar a tensão que crescia dentro de mim. Me senti de novo como o moleque de quatorze anos minutos antes do primeiro assalto.

— Você perdeu o tato do bagulho mesmo, irmão — ele disse, rindo. Tesoura não era um cara muito dado a rir.

— E ia manter pra quê? — retruquei. — Tenho minha vida arranjada já, caralho. Eu nem devia tá quebrando a minha cabeça com isso aqui.

Ademir filho-da-puta.

— Ah, mano. Daqui a pouco tu tá enchendo teu rabo de dinheiro. Aí eu quero ver se vai continuar pensando desse jeito.

— Vamos ver... — me limitei a dizer, focando minha atenção no trânsito. Aquele era um horário desgraçado para se estar logo ali.

Chegando na Ceagesp vi que Tesoura não tinha exagerado.

O pessoal tava embolado em volta dos caminhões para ir preparando o carregamento, mas por ali, eu via apenas os moleques e uns caras que eu sabia serem associados. Por alguma razão não muito clara, parecia mesmo que as outras pessoas que não tinham a ver com o assunto não se aproximavam de jeito nenhum, nem que fosse por acidente, como se houvesse algum tipo de campo de força ao redor da área que ocupávamos.

Isso me fez pensar que não era a primeira vez que algo do tipo acontecia por ali.

Naquele dia que a gente descarregou com o Capuava foi diferente, refleti. As pessoas não ligavam para o que estava acontecendo, mas não se mantinham afastadas como se aqui tivesse radiação.

Avistei o Miranda entre os caras observando eles prepararem os paletes, com as mãos na cintura e fui até ele.

— Tudo certo por aqui? — perguntei.

— Trabalham bem — comentou Miranda simplesmente. Usava uns óculos escuros que me pareciam ser femininos; algo que ele deve ter pegado da esposa sem reparar. Miranda era cheio dessas. — Se eles quisessem, seria uma boa botar eles pra ficar lá na expedição com a gente.

Miranda trabalhava na Vargo há doze anos e, segundo ele próprio, nunca tinha se dado muito bem com o Álvaro. Até hoje queria nos fazer acreditar que, se não fosse Ademir e eu termos comprado a transportadora, ele teria pedido as contas. Mas tenho que admitir que, conforme eu fui o conhecendo e senti que ele poderia servir para esses trampos paralelos sem dar problemas, ele segurou o tranco e lidou com tudo melhor do que eu podia imaginar. Até parecia gostar mais daqueles serviços do que os normais...

DeclínioOnde histórias criam vida. Descubra agora