Por causa do trampo na cozinha, onde tinham me botado de novo pra ajudar com os caixotes que os caras traziam pra abastecer, acabei chegando na hora da xepa atrasado e só tinha uma mesa com lugar disponível. Assim que cheguei, vi que o Torquato tinha se sentado na de sempre, a que era mais perto do pátio e dessa vez, eu não teria como ficar lá com ele.
Apesar de tudo, mano, eu fui me dando conta de que o trampo na cozinha não era tão ruim.
As cozinheiras pediam que eu fosse junto com os outros moleques porque elas me achavam grande o bastante pra conseguir ajudar com os caixotes sem muito esforço, o que os entregadores também concordavam. Tinha um deles, o Rafael, que tava sempre trocando ideia comigo e me dizendo que eu não devia tá ali. Então, enquanto eu tava lá, eu me sentia melhor, porque todos eles me tratavam bem, quase como se fosse na escola mesmo.
Tá certo que muitos dos caixotes eram pesados pra caralho, especialmente aquele com as cebolas, mas eu preferia me concentrar nos avisos do motorista do caminhão, o Geraldo, que dizia que um moleque do meu tamanho precisava de trampo daquele tipo, porque eu iria ficar com meus braços mais fortes e que com o tempo, ninguém ali dentro mexeria comigo — é, eu acabei soltando sobre muitas das encrencas nas quais eu tinha me envolvido.
Era foda, porque pela primeira vez, a culpa dessas confusões não era minha.
Eu realmente tinha me empenhado ali dentro, mano, pra ficar de boa e não arrumar pra minha cabeça, mas a porra dos b.o. grudavam em mim que nem as abelhas perto do açúcar lá na cozinha.
Eu tava cansado que só a porra, então, só tinha cabeça pra sentar, comer e depois ir dormir.
Nem cheguei a dar uma colherada no arroz e vi a sombra crescendo atrás de mim.
Puta que pariu, era o monitor.
Osvaldo, o nome dele. Eu não ia me esquecer nunca, tava bem ciente disso.
O certo seria eu me mostrar como o Torquato — porque o mano era o meu ponto de exemplo ali dentro daquela merda; eu queria e ia ser que nem ele ainda. Pode acreditar — e manter a expressão firme; mostrar pra ele que eu não tinha medo dele. Mas era foda botar em prática.
Não consegui.
Senti minhas costas duras feito um pedaço de pau e me virei pra frente, olhando pra bandeja, olhando rapidamente pros moleques que estavam sentados na mesa comigo... era noiada minha, mas eu sentia como se todos eles tivessem sabendo da história, quase como se tivessem ficado de plateia, enquanto ele tentava...
Afe, mano.
Que desgraça.
— Tá apertando a colher forte assim por que, moleque? — ele ergueu a voz de repente. Ele tinha uma voz de cara ruim mesmo, mano; uma voz grossa, meio amarga. Eu odiava esse cara com todas as minhas forças.
— Por nada não. Desculpa, senhor — me forcei a dizer, olhando pra ele mais uma vez. Se eu odiava ele, me parecia que era o mesmo com ele, porque ele me olhava com uma raiva... como se fosse capaz de me matar na porrada ali mesmo.
Então, por que ele queria fazer aquilo comigo, mano? Só na maldade mesmo?
Balançando a cabeça, ele não parou de me olhar, meu. Parecia tá decidindo o que ia fazer comigo.
Vai se foder, mas eu senti ainda mais medo. Não queria, não queria admitir, mas eu senti, mano. Que inferno.
E então, ele puxou o catarro do fundo da garganta e cuspiu na minha bandeja, bem em cima do arroz.
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Declínio
Misterio / Suspenso"Eu queria devorar esse moleque. Me sentia plenamente capaz de passar a noite inteira traçando ele, até meu pau esfolar. Meu peito tava agoniado. Em parte, eu queria respeitar ele, cuidar do moleque porque ele merecia demais essa atenção. E, em par...