Capítulo 171: Hipocrisia ou desespero

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POV Luna

Não haviam carros ou qualquer outro veículo por ali. Também não demoraria muito para o nascer do sol. Passamos por um chalé rustico, quase todo de madeira e consigo sentir o cheiro bom do café. Cristal coloca a mão no meu ombro e estaciono ali. Ela desce devagar da moto e parecia apreciar a vista.

— Quer ir à praia? — Questiono e ela confirma.

Deixamos o capacete na moto, atravessamos a rodovia e a ajudo a descer um pequeno barranco até a areia fria da praia. Cristal tira o tênis para sentir a água nos pés. Esperamos o sol nascer juntas, em silêncio. Alguns toques de mãos, olhares desajeitados, confusos ou perdidos. Como descrever esse momento? Tranquilo, paz, calmaria. Um silêncio bom, sem culpa. Quanto tempo faz desde a última vez que senti essa leveza nas minhas costas? Tudo votaria ao normal, não como antes, mas estaremos juntas novamente. A ficha só caiu agora, consegui cumprir a minha promessa e a trouxe de volta. Ela parecia tranquila ou cansada, não sabia distinguir.

— Não é melhor irmos descansar antes da viagem? — Pergunto, ela pisca algumas vezes e apenas apoia a cabeça no meu ombro. — Sabe o que isso lembra? O final do dia do seu aniversário. O calor da fogueira, essa paz e o cheiro do mar. De olhos fechados consigo voltar naquele dia.

Ela tinha o olhar distante no horizonte.

— Falei de mais, desculpa.

*Tudo bem, foi um dia bom.*

— Sim... contei para você que queimamos o condomínio, certo? — Confirma em silêncio. — Também tiramos tudo de importante das casas e vi o que guardava no baú. As armas rosas da invasão que fizemos ao banco uma vez. Uma máscara de bruxa do recrutamento da Renata. O buquê do seu chá de revelação e a minha bandana. — O silêncio reinou por alguns segundos.

*Percebi que a Chiara está com o pingente que Priscilão deu para mim de aniversário.*

— É, dei para ela dias depois do incidente e nunca mais tirou ele, é a forma dela te ter por perto. A Mel usa o Sunshine tanto para você quanto para o Teddy e sempre diz ter sonhos com o pai.

*Conseguiram enterrar ele?*

— Fizemos um funeral. Cada um se despediu da sua forma. Foi o mesmo com Vanessão, Max e Diego. Não deixaríamos nossa família para trás, como você ensinou.

*Quero vê-los.*

— Tem certeza? Hoje foi cansativo, posso levá-la outro dia.

*Disse que eu decidiria para onde iriamos.*

— É uma trilha na mata, difícil de acessar e já teve muito o que processar hoje. — Tento convencê-la.

*Pode ser a minha última chance de estar perto deles antes de viajarmos. Por favor.*

— Não posso negar uma despedida a você, vamos lá. — Levanto e estendo a mão para ela.

Caminhamos sem pressa até a moto. Nossas pegadas na areia se apagavam aos poucos com o vento. Cristal calça o tênis, coloca o capacete e estávamos na estrada outra vez. Sigo na trilha o máximo que consigo com a moto, mas como esperado, a mata densa fechava o caminho e encobria vários buracos onde a roda poderia prender.

— Vamos ter que ir a pé daqui, não falta muito. Quer que te carregue? — Pergunto assim que descemos da moto.

Ela nega e seguimos a trilha com cautela. Já havia amanhecido, mas as árvores e a nevoa dificultavam a visibilidade e Cristal cai.

— Machucou? — Abaixo ao seu lado preocupada.

Ela bate as mãos nos bolsos da jaqueta e começa a procurar algo pelo chão. — O que foi? — Cristal faz gestos com as mãos como se anotasse algo e entendo que havia perdido o bloco de notas com a queda.

Procuro com ela pelo objeto, levamos algum tempo até o encontrar em um monte de folhas secas e gavetos. Por sorte a caneta ainda estava presa as páginas.

*Torci o pé.*

Cristal avisa e levo-a no cavalinho o restante do caminho. Quatro túmulos, envolta de uma árvore enorme com pequenas gotas nas folhas a cair sobre à terra. Mal conseguíamos enxergar a copa, mas se nos aproximássemos o bastante, perceberíamos com detalhes cada rachadura do seu tronco a formar desenhos abstratos e os pequenos insetos presos em âmbar.

Ela desce das minhas costas e abaixa diante deles. Todos possuíam um item pertencente a quem estava enterrado. Vanessão e o seu machado, Max com a chave da sua moto, Diego e uma foto dos seus filhos e Teddy com uma bandeira do The Lost MC ao lado e um porta-retrato o qual guardava um desenho da Mel já danificado pela terra. Mantive-me afastada para dar um tempo a ela, para despedir-se, mas o seu choro impediu-me. Por alguns minutos apenas a observei escrever no bloco com as mãos trêmulas enquanto as lágrimas borravam a tinta. Depois ela arranca as páginas escritas e suja as mãos para as enterrar no solo úmido pelo orvalho. Um após o outro e hesitou diante do Teddy. Ela abraçou as folhas já amassadas e os suspiros do seu choro se tornaram mais altos. Não ouvia mais os pássaros locais nem o vento a agitar os galhos das árvores. Gostaria de acreditar que já havia sentido aquela dor, que já a superará, mas para ela, parece muito pior. Quem está nesse túmulo não era apenas um amigo, mas um confidente, um irmão. Imagino Thomas no lugar dele, acho que nem teria dor, seria apenas um vazio. Como uma parte de mim arrancada, mesmo que durante muito tempo estivemos afastados. Não posso ajudá-la, ninguém pode.

Olho para o céu em busca de um sinal ou qualquer resposta. Se alguém de fato existir aí em cima, se ainda estiver disposto a me dar uma chance. Bem, sabe que nunca irei mudar, não tenho nada a oferecer. Só um pedido, tire essa dor dela, ajude-a no que não posso fazer. Traga de volta a luz roubada dos seus olhos. Que hilário! Implorar por um ser que nem mesmo acredito que exista. Não sei se chamo isso de hipocrisia ou desespero, talvez uma junção dos dois e muitas outras emoções. Bem, pelo menos não podem dizer que nunca tentei.

Nem a distância nos separaOnde histórias criam vida. Descubra agora