Capítulo 175: Árvore-da-vida

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POV Cristal

O cheiro do mar, nunca imaginei que sentiria falta de algo tão simples. A junção da areia com a água quase imperceptível aos olhos graças à noite escura. Tão próxima à linha do horizonte, a Lua quase formava uma ponte de luz sobre as ondas e a espuma, como se nos convidasse a encontrá-la. A estrada estava calma, poderia adormecer se um aroma bom de café não me despertasse. Toco o ombro da Luna e logo ela estaciona no encostamento da rodovia próximo a um chalé simples e charmoso de madeira.

— Quer ir à praia? — Ela pergunta.

Apenas queria aproveitar cada centímetro dessa passagem. Fotografar os detalhes na minha memória, guardar os cheiros, gravar os sons e marcar as sensações como uma tatuagem na minha pele. Liberdade, ao tocar os meus pés na areia e sentir a água levemente molhá-los. Não estava presa a nada. Nem ao meu corpo ou a minha mente. Como descrever tal sensação? Essa leveza que me fazia flutuar, junto do calor do Sol, o qual mal aparecerá no céu. O cansaço fazia presença, mas não me renderia diante dessa magnitude. Desde quando um simples amanhecer se tornou tão importante para mim? Depois que se perde tudo, aquilo que antes não tinha importância, agora é o meu maior tesouro.

— Não é melhor irmos descansar antes da viagem? — Demoro alguns segundos para entender a pergunta e apenas apoio a cabeça no ombro dela, queria ficar mais um pouco ali. — Sabe o que isso lembra? O final do dia do seu aniversário. O calor da fogueira, essa paz e o cheiro do mar. De olhos fechados consigo voltar naquele dia.

Os nossos pensamentos não estavam tão distantes. Sempre fomos bem sincronizadas até nisso. Porém, não estava ali para relembrar nada.

— Falei demais, desculpa. — Para de se culpar, por que não consegue enxergar? Nunca vou colocar esse peso nas suas costas.

*Tudo bem, foi um dia bom.* O terceiro melhor da minha memória.

— Sim... Contei para você que queimamos o condomínio, certo? — Apenas balanço a cabeça para que ela prossiga. — Também tiramos tudo de importante das casas e vi o que guardava no baú. As armas rosas da invasão que fizemos ao banco uma vez. Uma máscara de bruxa do recrutamento da Renata. O buquê do seu chá de revelação e a minha bandana.

Tantos momentos. Se fosse uma escolha: mudá-los ou reviver tudo do mesmo jeito. Não sei se seria capaz de alterar essas memórias.

*Percebi que a Chiara está com o pingente que Priscilão deu para mim de aniversário.*

— É, dei para ela dias depois do incidente e nunca mais tirou ele, é a forma dela ter-te por perto. A Mel usa o Sunshine tanto para você quanto para o Teddy e sempre diz ter sonhos com o pai.

A minha pequena, agora está tão madura. Ela conseguiu-me perdoar, um sorriso fraco forma-se nos meus lábios e desfaz com a imagem de Teddy com a Melissa ainda bebê nos braços. Onde deve estar agora?

*Conseguiram enterrar ele?*

— Fizemos um funeral. Cada um se despediu da sua forma. Foi o mesmo com Vanessão, Max e Diego. Não deixaríamos a nossa família para trás, como você ensinou.

*Quero vê-los.*

— Tem certeza? Hoje foi cansativo, posso levá-la outro dia.

*Disse que eu decidiria para aonde iríamos.*

— É uma trilha na mata, difícil de acessar e já teve muito o que processar hoje.

*Pode ser a minha última chance de estar perto deles antes de viajarmos. Por favor.*

— Não posso negar uma despedida a você, vamos lá. — Ela estende a mão para mim e caminhamos de volta para a moto.

Não demoramos muito para sair da estrada e entrar numa trilha fechada. Reconheço esse caminho, o último lugar onde o encontrei. A sua árvore-da-vida. Luna estaciona, a mata estava muito mais densa que a primeira vez. Provavelmente era você que mantinha esse lugar organizado. Estava distraída com cada flor a nossa volta e quase como um sussurro podia ouvir a sua voz.

Flashback ligado/Anos antes.

— Sei que não é um lugar luxuoso como os quais a bela dama está acostumada, mas garanto que vai valer a pena. — Ele parecia tão alegre, é bom estar ao seu lado.

— Podíamos ter subido de moto, tem uma trilha em baixo dos nossos pés. — Estava cansada, o assunto é sério e não tinha tanto tempo, Cold desconfiaria da demora.

— Aí não teria graça. Não conseguiria apresentar a Petúnia, Violeta, Lavinha e muitas outras para você. — Teddy apontava para as flores a nossa volta com um sorriso de criança no rosto.

— Lavinha? Aquilo é lavanda, besta. — Digo e Teddy se aproxima com um dedo nos lábios.

— Shh! Ela odeia que a chamem assim. Quer ser responsável por matar uma flor com o seu mau-humor? — O seu tom era sério como se falasse de um parente, o contrário do seu olhar brincalhão. — Vem, se não fosse tão lenta e baixinha já teríamos chegado!

— Seu... — Ele corre a minha frente e tento alcançá-lo até o topo daquele morro.

Flashback desligado.

Distraída caio num buraco encoberto por folhas caídas e gravetos. Ouço um estalo no meu tornozelo e sinto a dor da torção.

— Machucou? — Luna, preocupada, abaixa-se ao meu lado.

Procuro pelo bloco de notas para explicar a situação e ele já não estava no bolso da jaqueta. Olho para o chão a minha volta enquanto ela me encarava confusa.

— O que foi? — Sinalizo com as mãos para que me ajudasse a procurar.

Não demoramos tanto para o encontrar, mas nossa maior sorte foi a caneta ainda presa entre as páginas.

*Torci o pé*

Nesse momento a dor não estava tão forte, mas sentia o local inchar. Luna, sem muito esforço, leva-me de cavalinho até o fim do caminho. O seu perfume se misturava com o das plantas. Não é o mesmo de tantos anos, mas é tão bom quanto antes, se não melhor. Um amadeirado mais suave com um pouco de menta para dar uma impressão refrescante e viciante. Como ainda consigo lembrar com tantos detalhes o seu cheiro? 

Nem a distância nos separaOnde histórias criam vida. Descubra agora