POV Cristal
Quando os esbarrões diminuíram, não tive coragem para abrir os olhos. O meu corpo é erguido do chão e ouço os passos apressados da Luna na escada.
— Deixei algumas revistas, livros e um celular com jogos para ela distrair. — Reconheço a voz da Renata e abro os olhos.
Entramos num dos quartos privados da boate. Ele foi provavelmente reformado ou apenas não o reconhecia. Desço do colo da Luna para observar o lugar. A poeira sobre os móveis revelava o tempo que não era utilizado. Um sofá largo, marrom, manchado de café ou alguma outra bebida derramada por acidente sobre o tecido.
— Caso precise de algo ou esteja entediada, basta mandar mensagem. Se for urgente, liga três vezes e corro para cá. — Luna salvava o contato com um sorriso fraco, preocupado. — Certeza que vai ficar bem aqui?
Pego o aparelho, desvio o olhar e confirmo com a cabeça. Ouço os passos e a porta fechar. Sento no sofá, penso em dormir, mas adrenalina de antes desperta-me. O quarto era organizado, mas aparenta estar fechado a algum tempo pela camada de poeira sobre os móveis, não que tivessem muitos.
O lugar era bem vazio com o sofá, uma poltrona e uma mesa de centro. As paredes enfeitadas com chamas coloridas em neon e a uma grande vidraça com vista para o palco e o show de luzes de Priscilão. Lembro de todos os projetos e plantas que revisei antes de começarmos a construir essa boate. A maior já feita na cidade. Com toda a divulgação, na inauguração batemos o recorde de pessoas reunidas em uma festa. Fora dias de muita música e bebida. Os convidados não queriam sair, era como se estivessem alternando. Alguns saiam para descansar e outros chegavam.
Movimentamos tanto a economia local que jornais e sites de notícias começaram a entrar em contato. Alguns queriam apenas uma entrevista enquanto outros buscavam a permissão para televisionar toda a festa. O dinheiro que ganhamos nesse lugar superava o lucro ilegal. Foi quando decidi limitar os eventos da boate, toda essa atenção era um risco para a facção, ocupava muito o tempo das meninas e tirava o objetivo da nossa organização. Se recebíamos mais com as festas, por que roubar e produzir os nossos produtos? Iriamos perder o foco. Um acerto tão preciso, que se tornou um problema.
Olho as revistas e os livros a minha frente. Nunca tive o hábito de ler para distração ou diversão. Sempre foi uma atividade, um treino com artigos de psicologia, manipulação, caso criminais, leis e métodos de investigação. Pego um deles, havia uma capa simples, mas chamativa. Ela variava em tons de azul e branco com dois olhos castanhos, brilhantes e inocentes. O título em alto-relevo: Berislav, apenas uma lenda. Uma palavra desconhecida com um tom de mistério e fantasia. Uma fuga da realidade para um mundo medieval com criaturas, magias e deus arrogantes de todo tipo.
O foco era um pequeno grupo de desconhecidos, cada um com personalidade e características únicas. Eles se reuniram com objetivos diferentes, mas um lugar em comum, uma ilha conhecida por uma lenda infantil. Foram atraídos por piratas os quais atormentavam o sossego de todo planeta ao espalharem a descoberta do lugar perdido na história. Cada uma das personagens possuía um objeto diferente a encontrar, mas todos estavam interligados.
O início não passou de uma história comum de fantasia, conforme se desenvolvia, os combates, investigações, a relação criada entre os personagens prendeu-me naquelas palavras. Nem percebi o tempo passar a minha volta. Como se entrasse de fato naquele mundo, pudesse ouvir as vozes deles e sentir as suas emoções. Não queria que acabasse, mas não poderia impedir.
— Gostou do final? — Assusto com Luna sentada a observa-me. — Estava tão concentrada que não me viu entrar e também não a quis atrapalhar. — Guardo o livro no mesmo lugar que o peguei e a vejo sorrir. — Já podemos ir se quiser.
Estico as minhas costas pelo tempo que fiquei parada e levanto para sairmos. Luna pega um capacete jogado no canto do quarto e descemos de mãos dadas para o primeiro andar. Não estava tão cheio quanto antes, mas algumas pessoas ainda dançavam na pista. Evito o olhar de todos e ajeito a bandana no meu rosto.
Ouço Luna falar no rádio com as meninas. A música não estava ruim, apenas incomoda, talvez pelo volume ou nem seja ela o motivo do meu desconforto. Apenas queria sair dali. Para onde? Não faço ideia. Andar sem rumo pela cidade, em silêncio para conseguir pensar, entender o que se passava na minha cabeça. Achar-me novamente em meio a esse labirinto de pensamentos obscuros e pesadelos.
Luna nos guia até a moto, coloca o capacete em mim, segura a minha cintura e ergue-me para o banco da moto. Foi quase como um flash e nos vi dentro da minha casa no condomínio. Os nossos beijos na cozinha, a sua voz próxima ao meu ouvido. Não sabia que ainda tinha essas lembranças. Que ainda era capaz de sentir esse arrepio e em segundos o cheiro daquele porco invade todas essas sensações.
— Deveria ter feito isso antes de colocar esse capacete. — Ela diz brincalhona e agradeço por ser assim, não quero manchar a nossa relação com os meus traumas.
Levanto a viseira para ela conseguir ver os meus olhos. Percebo-a se aproximar e pego o bloco de notas para que não avançasse.
*Conseguiram resolver tudo?*
— Sim, vendemos tudo e como pode ver, a festa foi um sucesso.
*Chiara ainda está lá?*
— Liberei ela e os meninos para se divertirem hoje, mas não tem com o que se preocupar, também tem pessoas sóbrias para cuidar deles.
Conversamos sobre a viagem e o que faríamos agora. Decidi andar pela cidade na garupa dela, já que não tinha um destino especifico em mente. O barulho do vento a se chocar no capacete e a brisa gelada que insistia em entrar pela barra da calça. Mal reparava ao nosso redor, estava concentrada na velocidade ou adrenalina que esse passeio causava. Sentia-me viva, com o coração acelerado e a respiração tranquila. Os pensamentos não existiam em cima daquela moto, apenas as sensações do meu próprio corpo. Hipnotizada pelo movimento, pela vibração do motor e pelo calor do corpo da Luna nas minhas mãos.
Luna também parecia perdida nessas sensações, mas foi trazida de volta ao passarmos próximas ao condomínio. O lugar onde tudo começou. Não! Não quero pensar nisso de novo. Por favor, só mais alguns minutos de silêncio. Viro o rosto como se pudesse escapar e Luna acelera.
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Nem a distância nos separa
FanfictionDentro de uma família, se criam laços, uns mais fortes que outros e o que elas criaram se tornou tão indestrutível que mesmo distantes, uma consegue sentir as emoções da outra. Mesmo que o mundo pareça estar contra, esse laço as uni, as prende. Essa...