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[...]


[NINA]


Os primeiros dias ali foram meio foda, porque realmente... a solidão e a minha mente tavam me matando aos poucos. Era meio foda contar o tempo ali sem relógio, mas pelos meus cálculos, deveria ser o 2° ou 3° dia que eu tinha sido trancada no cacete de um quarto. Eu sentia falta de ter alguém com quem conversar, agora que eu não tinha mais os meninos. A pessoa que vinha me trazer comida e me levar até o banheiro dali pra tomar um banho me parecia uma pessoa pouco disposta a conversar comigo ou me dar qualquer brecha. Eu não conhecia, mas era uma mocinha, da minha idade ou mais nova, que parecia estar com cara de cu sempre e sempre.

Ali, naquele dia, eu já tava subindo pelas paredes, quando o meu pequeno milagre resolveu acontecer. A pessoa que veio trazer minha comida naquela tarde era alguém que eu conhecia bem...

— Madalena? — Perguntei, reconhecendo o rosto da mulher que há anos eu tinha conhecido como a senhora que vinha alguns dias na semana pra limpar a casa do Barbás. Eu e ela tínhamos ficado próximas quando eu casei, como eu quem ficava a maior parte do dia sozinha em casa na época, a gente acabava passando muito tempo juntas.

— Dona Nina? — Perguntou, me olhando meio assustada. — É você que tá aqui?

— Madalena. Que bom te ver, saudades de ver um rosto conhecido. — Corri e abraçei ela apertado. Fazia alguns bons anos que a gente não se via, o tempo tinha lhe dado algumas outras linhas de expressão no rosto, mas essencialmente ela continuava a mesma.

— O que tu tá fazendo aqui...? — Ela parecia meio triste enquanto ligava os pontos na cabeça. Dei de ombro. — O que cê fez pra estar aqui?

— Fui embora cuidar da minha filha longe daqui. — Dei de ombros. — História meio longa, sabe? O Barbás ficou meio chateado. — Não falei nada sobre o quão sombria as coisas tinham ficado entre eu e ele. Se ela não sabia sobre as suspeitas que recaiam sobre mim e nem sobre minha situação meio estreita com o tráfico, era bom que continuasse sem saber.

— Minha filha... — Ela negou com a cabeça, levando as duas mãos ao peito. — Poxa, minha filha.

— Fica de boa, dona Madalena. Eu tô meio surtando aqui dentro desse cubículo e sem dar notícia pra minha família. — Falei, dando de ombros e indo até a comida. Ela pegou de volta das minhas mãos e eu fiquei sem entender.

— O patrão mandou deixar você ai dentro... — Ela negou com a cabeça. — Mas só tá eu aqui dentro, vem tomar um ar, filha. Vem comer na cozinha comigo e me conta a história. — Pediu, me dando espaço pra sair.

Sagaz como um coelho, escorregadia como uma enguia. É... Assim eu ia sobrevivendo e superando os problemas no meu caminho. Não sabia se era sorte ou Deus me dando uma forcinha, mas o fato é que, naquele dia, a vida tinha sorriso pra mim.

Comi meu almoço sentada na ilha da cozinha, enquanto a Madalena cozinhava e eu contava sobre minha vida no Paraguai. Era um alívio gigantesco poder sair e me sentir não mais como a prisioneira que eu era por um tempinho. Fiquei a parte da tarde quase toda ali, na atividade pra não ser pega num lugar onde eu não podia estar, até pra não comprometer a Madalena também. Como eu imaginei, o Barbás só voltava a noite e isso abria precedente pra muita coisa. Acabei notando que nos dias de folga da outra mina, a que parecia 100% do tempo bolada, era bem nesses momentos que eu podia sair namoral. Dia sim, dia não ela não tava por lá e a Madalena me deixava sair por um pouco. Eu terminava ajudando ela na cozinha e ganhava uns pontos me fazendo útil, afinal, ela era uma senhora. Mais uns dias se passaram nessa pequena rotina e eu imaginei que estava próximo de completar uma semana dali? 4 ou 5 dias, eu não sabia dizer ao certo, mas era algo tipo isso. Pelos meus cálculos, eu tava próxima da 2° semana na Rocinha. Comecei a me preocupar com a minha filha nesse tempo gigantesco que eu tava longe dela. A essa hora ela já devia ter iniciado o tratamento, feito a primeira dose do tratamento quimioterápico e a previsão incial eram 4 ciclos, podendo ser estendido até 6. O primeiro era sempre, sempre problemático... Por mais que eu soubesse que o Guilherme tava ali pra acompanhar a coisa toda, ainda sim meu coração não ficava em paz...

Em um dos dias que eu consegui sair, no final da tarde, depois de passar pano no chão na cozinha inteira, enquanto a Madalena fazia o mesmo no andar de cima, eu precisei escapulir pra um telefone. Sabia que eu não devia, ele ficava na sala e eu ia dar muita bandeira pros seguranças, mas eu sinceramente tava cagando. Fui até lá da maneira mais discreta que eu consegui e liguei pra minha mãe. Só a voz cansada dela já me contou tudo o que eu precisava saber.

— Tá no apartamento? — Perguntei.

— Tô. — Respondeu suspirando no caminho.

— E a Maria? — Perguntei, sentindo meu coração disparar. O que se seguiu, me quebrou em um milhão de pedaços e moeu a força que eu tinha até não sobrar quase mais nada. Eu já sabia que minha filha ia ficar mal, principalmente no primeiro ciclo, mas ouvir que aquilo já estava acontecendo e eu não estava lá foi horrível. Minha mãe evitou dizer com todas as palavras que ela tava sentindo minha falta, mas eu entendi no contexto das coisas que ela tava me dizendo. Se o meu plano inicial era ser discreta no telefone pra não causar tantos problemas pra mim e pra Madalena, a coisa caiu por terra assim que meu comecei a chorar tanto que eu não consegui nem conter os soluços. Quando eu desliguei, tive plena noção de que todo mundo tava olhando pra mim, mas eu tava tão afetada com as coisas que eu tinha escutado que me importei menos que o mínimo. Olhei feito pra todos eles e voltei deliberadamente pro meu quarto, pra sentar encolhida na cama e gritar, xingar e esmurrar o coitado do travesseiro. O objeto não tinha culpa nenhum, mas eu deixei extravasar toda a raiva e a indignação que eu vinha acumulando naquelas semanas ali. Eu tava tão triste, tão irritada, tão chateada com tudo que eu gritei e chorei tanto que fiquei rouca e chamei a atenção da casa toda.

Madalena veio um tempo depois, provavelmente me dar um esporro por ter passado dos limites que ela tinha me imposto, mas me viu num estado de surto tão deplorável que não falou nada, só se aproximou, passou a mão nos meus cabelos e, como eu não me mexi, só se afastou e trancou a porta quando saiu.

Coração em GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora