— Se me magoa? — Ele riu de novo, dessa vez sem humor algum. — Se liga, porra. — Eu odiava como se voltava a se fechar na sua armadura.
— Me magoa... — Confessei. — Eu sinto dor por causa de tudo o que aconteceu entre nós. Senti essa dor por anos e sinto até hoje, ela nunca me abandonou. Você é um buraco no meu peito, é um buraco nos desenhos da minha filha, um buraco em branco na minha família. Você pode se consolar achando que eu te esqueci, que te deixei pra trás e que isso é prova o suficiente pra te convencer de que eu te traí, mas as coisas não são do jeito que você pensa. — Confrontei ele com a verdade. — Você mesmo disse que nem sempre se tem opção... Opção nós nem sempre temos, eu não tive nenhuma na época, mas escolhas... escolhas nós sempre temos. Eu escolhi proteger o que sobrou da nossa família. Eu não posso me arrepender disso, porque se hoje eu tô aqui com a minha filha, na sua frente, é porque eu não parti pro enfrentamento na passado. Se hoje estamos nós três vivos, é pelas escolhas que eu fiz. E essa escolha me custou você.
Ele me encarou profundamente com a testa franzida e as sobrancelhas juntas. O próprio William tinha um olhar melancólico no rosto, pra combinar com o meu.
— Ninguém ficou feliz. Nem você, nem eu. Eu entendi o que a vida fez conosco e segui em frente, mas eu nunca aceitei. Eu nunca parei de pensar em você, tu tá completamente enganado se acha que eu passei uma borracha em toda a nossa história. Claro que houveram momentos em que eu me esforcei pra não lembrar de você, pra que eu pudesse viver e não só sobreviver da realidade de merda que eu tava. — Eu me senti vomitando tudo aquilo que tava no meu coração, agora que ele finalmente parecia escutar. — Mas eu sempre carreguei você comigo. — Ergui a mão esquerda e deixei a aliança cintilar sob a luz laranja.
— Em todos os momentos, eu pensei em você. — Confessei, virando a palma da minha mão pra observá-la em contraste com o anel. Sabia que ele observava aquele objeto que significava tanto pra nós também. — Acho que nunca deixei de pensar em você como meu marido, menos agora que eu te reencontrei. Minha ficha caiu. Você me perguntou um monte de vezes porque eu ainda usava a aliança, não tá claro pra você os meus motivos?
— Porra, não dá pra te entender, Marina. — Ele sentou em um dos bancos do bar, me olhando de cima.
— Se você vai me acusar de novo de não ter estado aqui quando você saiu da cadeia, eu já falei meus motivos. O maior deles tá lá em cima dormindo. — Cortei ele pra responder exatamente o que eu sabia que sairia da boca dele em seguida. — Não parece assustador agora, mas espera só ela ter uma crise de anemia ou uma infecção... ou voltar do hospital depois de ter tomado os quimioterápicos.
Passei a mão nos olhos rapidamente pra despistar qualquer umidade que se acumulasse ali. Eu não ia chorar na frente dele, nunca. Meu travesseiro estava no andar de cima, pronto pra ser encharcado com a minha tristeza. Não ali, ali nunca.
— Eu aceitei que nenhum de nós dois pode controlar o que aconteceu. Aceitei que foi o destino... — Dei de ombros, parecendo uma velha conformada com as tragédias da vida. Voltei meu olhar pra ele, pra tentar captar alguma emoção naqueles olhos escuros. — Você nunca vai acreditar em mim, né?
— Eu tô te dando o benefício da minha dúvida. — Falou com sinceridade, terminando o segundo copo e já se preparando pra o encher de novo.
— Posso beber com você? — Perguntei, sentando no banco da ponta onde eu tava, um metro distante dele. Ele não respondeu, mas se esticou e pegou um como o dele atrás do balcão e colocou na minha frente. Eu entendi aquilo como uma afirmativa.
Enchi o fundo do meu copo, peguei um gelo na cozinha e bebi em silêncio. Ele não olhava mais pra mim, mas pro próprio copo. Ninguém disse nada por um tempo bem grande... até que eu tive que tomar uma escolha. Ou ficava ali e quebrava aquele gelo, ou subia pra tentar dormir com a minha filha.— Ser dono da Rocinha é tudo o que a gente sonhava? — Perguntei, também olhando pro líquido do meu copo, evitando o olhar dele.
— Depende, po. — Falou de um jeito muito dele.
— Do que?
— Do ponto de vista. — Ele completou, mas não desenvolveu.
— Eu só vejo vantagens. O dinheiro, a moral, as mulheres... — Dei de ombros. — Pera, eu já sei. Te deixa exausto...
Ele me olhou de canto, escondendo a surpresa no olhar com uma golada no seu copo.
— É, é isso. Essa favela me esgota. — Confessou. — Era mais fácil quando eu era gerente, eu tinha mais liberdade e menos responsabilidade naquela época.
— Menos poder também. — Relembrei.
— E tu acha que eu faço só o que eu quero aqui dentro? — Ele riu, negando com a cabeça e virando o resto do copo na boca. Quando mais ele ia aguentar?
— Claro que não, eu sei o que é estar em posição de liderança numa organização criminosa. O meu lance só é um pouco mais sofisticado. — Dei de ombros. — Eu só fazia 60% do que eu queria de verdade.
— Eu faço 50% e olhe lá. — Falou. — O resto eu ignoro pelo meu bem e pelo bem dessa favela. Tem que ter inteligência e tranquilidade pra não fazer merda e acabar que nem o Caburé.
— É... — Concordei. — Pelo menos você tem cabeça e perfil pra isso. Não duvido nada que tu consiga ficar muitos anos a frente dessa favela.
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Coração em Guerra
Romansaㅤㅤ"Sou a morte, o diabo, o capeta, a careta que te assombra quando fecha o olho. Sou seu colete à prova de balas, seu ouvido à prova de falas... Eu vou tomar nosso mundo de volta." Djonga ㅤㅤㅤHá 5 anos ela foi acusada de trair o homem a quem ela amav...