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[...]


Mais tarde naquele dia, a gente tava jogado na sala. Pelo site das Lojas Americanas, usando o nome da mãe dele, comprei o videogame que ele tava querendo. Todo ano ele pedia o diabo do Playstation 5, tanto que eu cedi e paguei. Larissa foi lá na Gávea pegar pra ele e, enquanto isso, a gente tava ali, jogando no Play 4 que já tinha em casa. Marina tava sentada no sofá com a Maria Ísis apagada no colo dela. 

De canto de olho, eu fiquei observando ela. Distraída, ela tava lendo um livrinho infantil. Mesmo depois da Ísis já ter dormido, ela continuou lendo. Só pelo jeito que ela tava olhando pro negócio, já dava pra perceber que a cabeça dela não tava ali. Pelo jeito que ela desviava os olhos pro nada, depois voltava e virava o livro de ponta cabeça... Angustia. Eu sabia bem como era se sentir daquele jeito. Se pá ela também soubesse... porra, eu me sentia agoniado de saber que a Maria Ísis tava doente. Ela tava há anos nessa luta. 

— Pedro. — Chamei ele, no final da luta que a gente tava tendo ali na TV. — Tá vendo aquela menina bonitinha ali? — Perguntei, apontando para Ísis dormindo. 

— A Maria Ísis?

— É, moleque. Ela é minha filha também, do mesmo jeito que você é. Ela é... sua irmã mais nova. — Expliquei a situação pra ele de jeito resumido, já que mais cedo ninguém chegou a tocar no assunto. Eles só conversaram e brincaram de um jeito puta natural, enquanto a gente sentia o clima "família". 

— Eu sei, pai. — Ele falou, nem virando pra me olhar. Já tava colocando outra luta pra começando. 

— Sabe como? Sua mãe te falou? — Perguntei, já escolhendo o bonequinho de viado pra lutar contra o dele. 

— Aham. Eu já tinha visto ela. — Na hora que ele disse, eu parei no lugar. Peguei o controle da mão dele e dei pause no bagulho. 

— Viu ela onde, Pedro? — Quis saber e ele olhou pros lados, depois pra Nina, fugindo do meu olhar. — Hein, moleque? Viu ela onde? 

— No hospital, pai, num lugar no meio do mato lá. — Pedro explicou, voltando a olhar pra Nina. Ela deixou a Ísis dormindo no sofá mais afastado e veio pra perto da gente, já com a cara de cu dela. Pressionei o Pedro pra ele soltar a história toda de uma vez. — Eu fui com a minha mãe ano passado... não, não, foi retrasado... eu fui com a minha mãe de carro pra um lugar longão lá e ela tava lá com a Nina. 

— E onde que era? 

— No hospital. 

— No hospital onde? 

— Não sei, pai. — Ele soltou o braço de mim e cruzou os braços. Fazendo isso, ele parecia muito eu quando tava começando a ficar puto com alguma merda. — Minha mãe pediu pra ficar num negócio grande assim ali, e tomar uma injeçãozona. Ai eles tiraram sangue de mim e foi isso. Depois a gente foi num quarto lá e a Maria Ísis tava lá. A Nina também. E tinha uns médicos também... Ai minha mãe disse que ela era minha irmã. 

— Caralho... — Agora sim eu ia ter que comer o cu da Larissa com areia. Ela sabia onde a Marina tava o tempo todo e fingia que não sabia. Me senti traído por aquela vagabunda, porque eu confiava minhas costas a ela. 

— Eu ainda tinha o telefone antigo da Larissa. Eu liguei pra ela chorando a noite que a Maria Ísis entrou pra lista de receptores de medula óssea. Eu contei a história pra ela, mandei todos os laudos por whatsapp, tudo o que eu tinha pra comprovar que a Ísis realmente tava muito doente. — Foi a Nina que começou a explicar. — Mandei foto dela no hospital, ela tinha ficado muito magrinha naquela época e eu tava desesperada. Pedi pra ela, como mãe, pra testar o Pedro. As chances dele ser um doador eram pequenas, mas eu precisava tentar. Sabia que a Larissa não ia deixar minha filha morrer sem fazer nada. Eu dei algumas garantias pra ela, e ela veio pra fazer uma bateria de exames no Pedro em Foz do Iguaçu. Eles ficaram uns 2 dias na minha casa, enquanto a gente esperava sair o resultado. 

— Ela sabia que eu tava te procurando, porraq. — Disse num tom baixo pra não deixar o Pedro ligado no que tava acontecendo ali, não sabendo como fazer aquilo descer pela minha garganta. Óbvio que eu entendia a história, mas mesmo assim, irmão... 

— Sabia que você tava com ódio de mim também. E sabia que eu tinha um bebê com leucemia que dependia de mim. Tu contaria? Se fosse você? — Perguntou em um tom suave. Ela tinha medo pela Larissa, não tinha como não ver o tamanho da gratidão que ela tinha pela mãe do meu outro filho. — Sabendo que você ia vir armado até os dentes atrás de mim, onde eu também estaria armada até os dentes. Não ia ter sido um confronto bonito, sabe? Nem pra mim, nem pra você ou pra Rocinha. A gente ia se matar enquanto nossa filha morria no hospital sozinha. — Ela foi dizendo, enquanto eu fui escutando em silêncio. — Eu prometi a ela que voltaria assim que a Maria Ísis ficasse daquela cama de hospital, pra prestar minhas contas com você. Ela sabia que eu ia estar aqui quando as coisas melhorassem. Acho que só por isso ela guardou o segredo. 

— Eu não aceito isso. Quem guarda as minhas costas não pode me trair desse jeito. — Neguei com a cabeça. Eu tava puto mermo. Caralho, eu entendia, mas ela tinha que ter sido transparente comigo. 

— Barbás, ela não... — Ela ia falar alguma coisa, mas o foco da conversa chegou bem na hora. A loira entrou em casa com a caixa do videogame nos braços, balançando pro Pedro, que saiu correndo na direção dela. 

Coração em GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora