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Desci na Ápia do Uber e fiquei por ali mesmo. O whisky tava começando a bater firme e minha cabeça tava girando. 4 e pouco da manhã, tava tudo fechado obviamente, não era final de semana. Alguns poucos trabalhadores vinham descendo a favela rumo ao asfalto e eu fazendo o caminho contrário... a pé. Fui em direção a Vila Verde, passando pela curva do S e parando na Praça da UPA. Ali, próximo a unidade de saúde, algumas pessoas aguardavam atendimento. Um pequeno grupo de jovens farreavam e uns bêbados, como sempre, estavam jogados por ali. Talvez ali fosse o único local, na favela toda, onde teria alguma alma viva naquele horário. Ao menos de gente que não fosse do movimento. 

Vi um rosto conhecido a distância. Próximo aos jovens, um dos namoradinhos que eu tive na juventude, Hélio, que tinha estudado comigo na escola, patrulhava com sua pistola na cintura. Ele, ali, provavelmente tava de vapor, sido movimentado pela clientela que tava reunida numa mesa ali na praça, a tal galera animada. 

— É foda, eu vou morrer e não vou poder dizer que já namorei alguém que não fosse bandido. — Me aproximei dele, vendo uma luz de reconhecimento atravessar o seu rosto. — Sabia que tu tava nessa vida não, Hélio. 

— Marina... — Ele se aproximou pra me dar um abraço meio de lado assim. Fazia um boooom tempo que a gente não se via. Bom, essa favela era um lugar grande mais as vezes. — Achei que tu tinha morrido. 

— Eu sou lá mulher de morrer? — Brinquei e ele riu. 

— Tu sumiu... tipo, tu só sumiu e teve uns boatos aí... 

— É, é, eu sei. — Dei de ombros. — Ossos do ofício. Falar nisso e isso ai? Entrou? 

— Precisando de emprego, né? A vida tá dura ai fora. — Se explicou e eu o senti meio desconfortável com isso.

— Entrei por causa disso também. — Confessei, apoiando uma das mãos na mesa da galera pra quem ele tava vendendo os bagulhos. Alguns deles me olharam meio de canto, uma animosidade no ar, sabe? Eu ignorei e eles também não falaram nada. — Mas sabe qual é, Hélio? Tem uma hora que essa vida aí não tem mais volta. É um buraco sem fundo. Só... vai um passo de cada vez. Se tu tiver duvida, para e pensa. 

Eu tava aconselhando ele quase como se tivesse falando comigo mesmo alguns anos mais jovem, quando entrei pra boca da Barcelos e conheci o Barbás. Se eu tivesse alguém mais experiente que eu, que tivesse comido o pão que o diabo amassou como eu comi, falando uns papos retos desses pra mim, talvez eu tivesse pensado duas vezes... 

— Um papo desses, uma hora dessas, é rajada. — Falei imediatamente depois. Porra, que caralhos de divagada eu dei. Papo esquisito e pessoal até demais pra ser dito pra um velho colega e um monte de estranhos, numa praça às 4h da manhã. O silêncio de todo mundo depois foi um bagulho surreal, felizmente eu sempre podia culpar o whisky e não minha fragilidade emocional depois de fingir ser forte o dia todo. — Foda, eu tô meio bêbada. — Me justifiquei. — E vou começar a chorar a qualquer segundo, tá foda. 

— Que isso, moça, senta ai. — Um deles que tava sentado naquelas mesinhas de pedra da praça me ofereceu o banquinho dele. Eu sentei e apoiei meu rosto na mão. — Quer um baseado?

— Eu não fumo. — Disse, lembrando da chaminé que o Barbás tinha virado. — Quer dizer, eu até fumo... Quer saber? Me dá um fininho aí nessa porra. 

— Dá um dos nossos aí pra dama, HK. — Falou, pegando um já enroladinho e passando pra mim. Coloquei na boca e puxei, enquanto ele queimava a ponta com um isqueiro. 

— HK, né? Tipo da arma, peguei teu vulgo, Hélio. — Disse, depois de dar um tragadão. Cheguei a parar a frase no meio pra dar um tossida. 

— Gostou, né? — Ele brincou, depois riu de mim tossindo. — Aí, se eu nunca tivesse chegado a fumar contigo na época do colégio, eu ia achar que tu nunca tinha fumado. 

— Me respeita, porra. — Bati a mão na mesa, segurando o baseado com a outra. — Eu vi tanta maconha na minha frente nos últimos anos, que eu cansei, tá ligado? Se bem que eu nunca fui muito de usar esse treco depois que eu fiquei adulta... depois que eu comecei a vender, então... aí que quase nunca mais mesmo.

Mais um tragadão e eu prendi a fumaça, segurando a respiração por uns segundos e sentindo o mundo todo girar ao meu redor. Soltei, voltando pra Terra.

— Eu tinha que voltar pra casa, mas eu tô meio com medo do meu... meu... do meu alguma coisa, da pessoa que eu amo, não estar lá, tão ligados, colegas? — Perguntei, sentindo meus olhos darem uma pesada de sono. Eu devia mesmo subir pra casa, mas é foda, dentro de mim, tinha uma medo absurdo de chegar lá e encontrar a cama absurda novamente. E se eu ainda conhecia o Barbás, era exatamente assim que ela ia estar. Ele quando ficava acuado, bolado com alguma coisa, ele fugia pra se esconder que nem um cachorro. Meu coração ia se partir em um milhão de pedaços quando descobrisse que ele não tinha ido me procurar depois do dia inteiro e preferido ficar sozinho naquele momento crítico. O pior? Eu não podia culpar ele. A culpa era metade minha, metade do destino.


Coração em GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora