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[...]

Levantei da cama, olhando pra Jessica dormindo do meu lado. Eu não tava com sono, pra variar. Fazia um tempo que eu não sabia bem o que era dormir direito, eu nem tentava mais. Deixei ela lá, como sempre, e saí. Subi pro meu quarto pra tomar um banho e pegar minha carteira de cigarro. Fui pro primeiro andar e procurei o isqueiro por trás do bar, catei meu celular que tava por ali também. Enquanto andava pra parte de trás, fui verificar se alguém tinha mandado mensagem. Como não tinha ligação, imaginei que nada grave tinha acontecido. Eu tinha que discar uns parceiros também, pra resolver umas questões internas. Já era tarde, mas até onde eu sabia, bandido não dormia. Então foda-se.

Abri a porta de trás, já ligando pro gerente da Vila Verde. O problema dele lá com o gerente da 99 era um porre, mas o cara nem tava errado. O Irã era um pé no saco do caralho, eu tava começando a pensar num jeito de sumir com ele sem causar fofoca na favela. No caso dele, ser incompetente era ponto de vista, já que ele não falhava na missão dele, mas o jeito dele de fazer as coisas... ai que morava a merda. Ele era desonesto sem deixar isso claro, o que me dificultava muito as coisas. Aliás, tava ai um bagulho que eu não era bom, mas eu tinha que dar meu jeito. Conciliar problema dos outros. Normalmente eu pouco me fodia quando não era comigo, mas não dava pra ser assim. Assunto da favela, era assunto meu também.

Fiquei uma pá de tempo trocando uma ideia com ele ali, puxando outro cigarro conforme o que eu fumava ia acabando. Não percebi que tinha companhia enquanto falava no telefone. Só quando eu desliguei, que levantei do banco do lado de fora e andei uns metros pra chegar na cozinha externa, que eu reparei numa figura nova. Marina tava sentada bem encolhida, entre a parede do quarto dela e a estrutura da bica do lado de fora, com uma tábua de carne da cozinha de fora no colo. Em cima da madeira, um negócio que eu reconheci como sendo tipo um papel toalha e uma caneta que eu não tinha a menor ideia de onde ela tinha tirado. Ela rasbicava furiosamente, puxando seta a torto e a direita, fazendo conta, totalmente alheia.

Parei perto dela, me perguntando que caralhos era aquilo. Ela, quando me percebeu um pouco tarde demais, colocou os cotovelos sobre a tábua, me olhando com surpresa.

— Tá calor lá dentro, tá? — Se justificou, jogando a tábua na pia e fazendo uma bolinha com o papel toalha, pra jogar ele no lixo.

— Tu queria um ar condicionado? — Perguntei, escondendo a ironia na expressão séria.

— Queria que tu parasse de fazer proposta de brincadeira. Eu quero sim um ar condicionado. — Respondeu, se encostando na geladeira. — Que foi? — Perguntou.

Eu não respondi e ouvi meu celular tocar. Me afastei pra atender o irmão da Vila de novo. Quando eu me virei de novo, ela tinha se sentado na porta do quarto dela, olhando pra própria mão em silêncio. Reparei de longe um dos seguranças da noite, vigiando ela da posição dele na garagem. Reparei nos anéis que ela girava distraidamente. Um deles um conhecia muito bem, porque era a aliança que eu tinha dado pra ela quando a gente casou. Eu lembrava perfeitamente do metal amarelado e as pedras que tinham incrustado nele. Porra, tinha custado um rim pra mim na época. Eu já tinha reparado nele no dedo dela antes, mas a informação não tinha entrado bem na minha cabeça por causa do estresse da situação.

— Por que tu ainda usa isso? — Quis saber. Ela nem me olhou, só deu de ombros e negou com a cabeça.

— Sei lá. — Respondeu um tempo depois. — Eu nunca quis tirar.

— E por quê? — Eu realmente queria entender o que passava na cabeça daquela mulher. A mente dela não funcionava do mesmo jeito que a de todo mundo.

— Não sei mesmo, sério, nem eu entendo mais. — Os olhos dela continuavam na peça de metal em seu dedo. — No início eu até sabia. Eu tava grávida e sozinha, eu não queria me sentir solitária. Eu queria sentir que a gente ainda tava ligado porque eu usava isso, que você ainda ia estar ali nas minhas costas quando a nossa filha nascesse. Com o tempo a ilusão foi passando, junto com o turbilhão de hormônios da gestação, e eu... só não consegui me desfazer dela, então, ficou comigo todo esse tempo. — Explicou, como se falasse mais pra si do que pra mim. — Já me acostumei, ela nem sai mais do meu dedo mesmo. — Forçou a aliança, que travou no nó do seu dedo.

— Isso não faz nem sentido. — Respondi.

— Eu sei que não, por isso eu não sei explicar direito. É só... sei lá, mano. Se pá eu só não quisesse esquecer, ou ter alguma coisa pra mostrar pra minha filha no futuro.

— Tu é engraçada pra caralho. — Ri, levando mais um cigarro à boca e acendendo. Tava precisando dar uma baixada na minha pressão mesmo. — Tu faz o que faz e fica aí, toda saudosa depois.

— Eu não fiz. — Falou com firmeza. — Nunca tive relação nenhuma com o Parma.

— Mesmo que tu não tivesse, foda-se. Foi você quem foi embora. — Disse, tragando o cigarro com mais força. Eu odiava aquele assunto pra caralho, não sabia nem porque eu tava ali fora discutindo isso com ela.

Coração em GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora