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[UMA SEMANA DEPOIS]

[NINA]



O que eu tinha corrido na última semana não tava escrito, viu? De bom e de ruim. Na casa do Barbás, o mundo parecia uma festa. Nina e o Pedro estavam se conhecendo melhor e eles já tinham se adorado. Ele fazia ela rir e isso aquecia o meu coração. Pedro era um doce de menino, quem não o amaria, né? Ali naquela casa, nós parecíamos uma família... a família que o destino tinha nos roubado. Dentro das paredes daquela casa, a felicidade era uma bolha intocada, assegurada pela inocência da Maria Ísis e do Pedro. Do lado de fora, o relógio corria rápido demais. 

Barbás tinha me dado a chance de tentar e isso, pra mim, era um gesto e tanto de parte dele. Ele se afastou de casa, nós víamos ele a noite e eu mal conseguia falar com ele direito. Passou todo o tempo no escritório, enfurnado dos seus próprios assuntos. Na verdade, eu sabia que ele tava fugindo de me encarar e eu não culpava ele por isso. O que eu fiz foi aproveitar o tempo pra correr atrás das minhas coisas e a buscar os meus aliados. Liguei pro Guilherme e o Rogier, pra ter certeza de que eles estariam ali na cidade até o fim da semana. Precisava ver eles antes de qualquer coisa. 

Depois, eu corri... Pra cima e pra baixo, pela Rocinha inteira. Tinha ido algumas vezes à Ipanema, onde o Gui tinha acabado de se hospedar pra ver com ele os detalhes do transplante da Maria Ísis. O resto, foi só conversando com meus irmãos, com a Larissa, com a minha mãe, com o Túlio, com o Andrei, com todo mundo que tinha passado pela minha vida. Eu tava tentando construir uma narrativa junto com eles, de um jeito que todo mundo falasse a mesma língua quando fossem nos escutar. Era difícil porque por mais que eu tivesse certeza que eles esquentariam minhas costas, tudo o que eles tinham pra falar é que acreditavam em mim. Nenhum podia dizer que era testemunha da minha inocência. Que tinha provas cabais de que eu não era culpada. Eles me amavam e só por isso, a credibilidade ia lá em baixo. O que garantia aos outros que eles não estavam mentindo em meu favor?

Eu precisava ver o Rogier, mas o meu cão de guarda, o Piloto, simplesmente não me deixava ir até o PPG ver ele. E talvez isso fosse pro melhor, porque as coisas estavam muito esquisitas por lá. Mesmo quando eu consegui convencer ele a ir até Copacabana comigo, eu senti uma batida estranha logo que passei pela entrada do Galo*. Na terça, o Rogier tinha chegado ao Rio e tava por ali, mas só hoje, sexta, nas vésperas do tribunal, que eu tinha conseguido marcar pra ver meu tio.

Tava sentada na beira da praia de São Conrado, com o Piloto sentado numa mesa um pouco mais atrás. O clima tava nublado, muito feio, não dava nem pra dar um mergulho. Nem se eu quisesse, eu tinha cabeça pra isso. Meu tio chegou um tempo depois e sentou do meu lado, na canga.

— Ah Ninão... - Abracei ele forte assim que notei a presença dele. Fazia um tempo que eu não vida o velho, desde que eu tinha vindo pra cá e ele ido pro Paraguai. — Tá tudo bem com você? — Só pelo seu tom cansado, desanimado, de voz, eu sabia que tudo o que eu temia que acontecesse tinha acontecido.

— Não, não tá. — Fui sincera. Ele viu nos meus olhos que o meu mundo tava de cabeça pra baixo. - PPG virou? - Fui reto no assunto. Queria saber o que tava rolando de uma vez.

Ele só fez que sim com a cabeça.

— Rio Comprido?

— Uma parte ainda tá com a gente. O Fallet-Fogueteiro e Santa Tereza ainda tão, mas o pau tá comendo lá. O Prazeres já virou quase inteiro. São Carlos, Mineira, Coroa...

— Eu já entendi, tio. Eu sabia que isso ia acontecer... — Neguei com a cabeça, me sentindo a mulher mais burra do mundo. - Tu sabe quem foi? Pirraça?

— Então tu já tava sabendo...

— Não tava, mas eu desconfiei. Ele nunca gostou de mim e eu já imaginava que o Barnabé não ia ter força pra segurar tudo. Tem que ter uma cabeça de titânio pra ficar a frente de favela assim e eu nunca vi essa garra nele. — Confessei, olhando pro mar e mordendo o canto das minhas bochechas pra me manter forte. — Eu fui inconsequente, Rogier. Eu só pensei na Maria e deixei todo o resto afundar, a culpa é minha. — Disse, sabendo que aquela era a mais pura verdade. — Eu estraguei o seu trabalho de vida... o trabalho de vida do Carlos. As coisas no Paraguai vão ficar difíceis agora, sem o apoio certo dessas favelas... Eu fodi tudo.

Eu não ia me permitir chorar naquela hora, por mais que eu quisesse muito. Eu tinha que encarar as coisas de frente que nem uma mulher. Eu me arrependia de nada. 

— Não dá pra abraçar o mundo todo, Nina. — Ele disse, sem nenhum julgamento na voz. - A gente só vai até onde nosso braço alcança.

— Eu sei. Eu fiz uma escolha, tio... e tá me custando muito, muito caro. — Passei a mão pelos cabelos. — Mas eu vou resolver tudo isso. Eu tenho uma saída pra vocês, mas eu preciso saber se tu tem pique pra lutar.

— É claro que eu tenho pique, só que as coisas tão pretas, Nina. Não tem nada que a gente faça que vá impedir do levante do Pirraça de tomar todas favelas que sobraram. 

— Ele pode tomar tudo se ele quiser. — Ri. — Eu sei de cada arma que tem em cada uma daquelas favelas. Foi eu que vendi e transportei todas elas. 

Ele só me olhou, interessado no que eu tava falando. 

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*Galo: Cantagalo. Junto com o Pavão-Pavãozinho, fazem parte do "PPG". Conjunto de favelas localizados em Copacabana. 

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Coração em GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora