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— Quando eu disse que ela parece com o Pedro de rosto, foi eufemismo pra dizer que ela parece com você também. — Suspirei, olhando tudo que ela tinha pintado numa imagem que passava na TV, diante dos nossos olhos. Ela ia apontando o papel, com a minha mãe atrás, dando suporte. Ela pegou o celular da Maria e ficou gravando ela, mostrando as coisas que ela tinha feito durante o dia. Meu coração foi derretendo no caminho e eu perdi até o rumo. Tava morrendo de saudades dela...

Ela foi contando sobre como o hospital era chato e reclamou de ficar ali. A comida era chata, as pessoas eram chatas, todos os brinquedos era chatos e ela tava chateada por ter que ficar lá. Sabia que seria assim... Nos primeiros dias depois da primeira dose, ela ia passar mal e ficar doentinha. Depois, quando os efeitos colaterais começasse a amenizar, ia ser brabo manter ela na cama namoral. Assim era a Maria Ísis.

Meu olhar ia intercalando dela pro Barbás. Ele não verbalizava as coisas que tava sentindo, mas eu sabia que era muitas. Fiquei instigando a Maria, pra ela continuar contando sobre a vida dela, eu sabia que ele estaria interessado. Tinha certo fascínio nos seus olhos enquanto ele olhava pra TV, pra todas as expressões dela e pela bagunça que tava fazendo na cama. Minha mãe tava enlouquecendo com ela, eu sabia, mas era tão bonito ver ela por ali... No final, quando o celular voltou pra mão dela, eu liguei a minha câmera e a tela na TV se separou, eu deixei ela me ver. A carinha dela foi impagável, meu Deus...

— O cabelo tá molhado. — Comentou sobre a minha aparência.

— Tem que estar, filha, eu tava tomando banho. — Concordei, mandando um beijo pra câmera. — Mamãe tá com saudade.

— Quando cê volta, mãe? — Perguntou, fingindo estar emburrada. É... ela parecia muito comigo mesmo. Muito fofa, meu Deus. Quando ela terminou o questionamento, eu senti os olhos do Barbás sobre mim, devolvi a encarada antes de voltar minha atenção pra ela. Eu não sabia o que ele queria dizer, mas não era agressivo... Acho que ele tava interessado no que eu diria pra ela.

— A mamãe vai ficar um pouco mais por aqui, mas daqui a pouco eu volto. Juro juradinho. — Fiz um sinal pra ela e ela imitou.

— Mamãe... — Reclamou manhosa. — Mamãe... — Repetiu. Ela ficava chorosa assim sempre que queria alguma coisa que sabia que não podia ter.

— Não começa, Maria. — Repreendi. — A gente já conversou sobre isso, né? Mamãe tá sempre aqui, sempre que dá te liga, espera só mais um pouquinho.

— Tá, tá. — Concordou meio a contragosto, com um biquinho nos lábios. Depois ela bocejou e escorregou discretamente pra cama de novo, minha mãe passou atrás cobrindo ela.

— Vai dormir, bebê, depois a mãe liga de novo, tá? — Prometi, mesmo sem saber se ia poder cumprir, mesmo que eu desconfiasse que agora minha narrativa ia começar a ganhar, nem que fosse só um pouco, de força. — Te amo.

— Também te amo, mamãe. — Ela deu um beijo no celular e eu dei um sorrisinho, fazendo o mesmo. Desliguei a câmera e depois de uma longuíssima despedida, eu finalmente encerrei a chamada, devolvendo o telefone pro Barbás. Ele demorou a pegar, tava na mesma posição ainda agora, que só havia uma tela preta à sua frente.

— Você tá convencido que ela é real? Ou acha que eu sequestrei uma criança coincidentemente parecida com nós dois? — Perguntei, querendo arrancar alguma coisa dele.

— Eu sei fazer conta, Nina. Ela deve ter mesmo seus 4 anos, a idade bate... — Ele suspirou e passou a mão no rosto, parecendo meio desolado agora que o seu objeto de fascínio tinha sumido. Engoli em seco com ele me chamando pelo apelido... sabia que era força do hábito. Por vezes, eu me pegava tentando me controlar pra não chamar ele pelo nome de batismo, as vezes só saía. — Caralho, como que eu fui perder todos esses anos... — Seu olhar foi pro ponto mais distante de mim da sala e parecia meio perdido. — Como que eu passei 4 anos da minha vida sem saber que eu tinha uma filha?

— Tu não tem que se culpar por isso, arrancaram isso da gente. — Deixei o cansaço aparecer na minha voz e suspirei também, sentindo 10kgs de passado pesando nas minhas costas. — A nossa família...

— Nossa família... — Ele repetiu com escárnio.

— É, nossa família. A gente podia ter tudo, absolutamente tudo. Viver perfeitamente nossa vida imperfeita, mas arrancaram isso da gente. — Falei, sentindo uma nota de choro no final da frase. Aquilo me doía muito, me dava um sentimento de solidão incontrolável... eu sempre evitava voltar pra essa questão, era horrível me lembrar de tudo o que eu tinha tido e perdido. Tudo o que eu poderia ter tido... — Nossa família nunca floresceu, porque o mundo é mau. E a gente faz parte dele, querendo ou não.

Coração em GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora