171

1.9K 195 48
                                    

— Tu nunca mais bebe desse jeito. Eu vou mandar nunca mais te venderem cachaça nenhuma nessa favela. — Briguei, empurrando ela contra a grade de uma lojinha que tinha ali. Fez um barulho fodido. 

— A culpa é sua, cachorro. — Ela me deu um socão no peito. — Você não vale nada. 

— Tu também não, a gente tá quite nessa vida de merda que a eu e você levamos. — Repeti o que ela tinha dito antes, segurando o cordão dela entre os dedos. Ali, a gente se parecia mais do que eu e ela queríamos admitir. — Índia. 

Ela piscou e eu senti um arrepio levantar os pelinhos do seu braço. Nina me olhou, tentando entender o que eu quis dizer com aquilo. Senti que ela deu uma escaldada e eu me perguntei o porquê em silêncio. 

— O doutorzinho tá errado pra caralho, não tem como tu ser a Nina e só fingir ser a Índia. Nem ser a Índia, sem ser a Nina. Ele gosta de fingir não ver a porra da bandida que tu é... — Disse pra ela, com as palavras daquele merdinha martelando na minha cabeça. Ele falando da Nina e do vulgo dela como pessoas diferentes foi a coisa mais fodida que eu ouvi em dias. Ela era uma só, fazendo o bem ou o mal, e ele nunca ia ser homem pra ela por não entender isso. — Tu nunca foi de se esconder... francamente, Marina. 

— Tu acha o que? Que eu fingia não ser quem eu era perto dele? Tu me conhece melhor que isso. — Respondeu, cruzando os braços no peito. — Não deu certo entre eu e ele por isso, mas ele é uma pessoa boa, nem todo mundo é obrigado a entender o jeito que eu vivo. 

— E tu ainda tá justificando ele, que bonitinho... — Dei um sorriso sem acreditar e neguei com a cabeça. — E olha só, não é que tu deu pra ele mesmo? E usando isso aqui ainda. — Agarrei a mão esquerda dela, botando a aliança dourada na frente dos olhos dela. — Cachorra. 

— Resolveu achar que minha aliança vale alguma coisa agora? — Cruzou os braços no peito. — É de bom tom tu respeitar ele como uma pessoa que já fez muito por mim e pela sua filha. Esquece ele, que eu vou deixar o Guilherme longe das tuas vistas, valeu? — Ela disse e eu senti a consideração que ela tinha por ele me dar uma pontada fodida por dentro. Era um negócio que tava me incomodando pra caralho. 

Estreitei os olhos pra ela, quando o assunto virou o doutorzinho e eu vi o carinho transparecer na voz dela de novo. Era foda entender que eu não tinha mais controle sobre ela. Quando eu tinha decidido liberar ela no tribunal, eu sabia que a "liberdade" ia além de só a chance dela de ficar viva. Eu não era dono dela, mas entender isso tava sendo pica pra mim. Por mim, eu socava ela dentro da minha casa pra sempre e já era... mas eu não podia fazer isso. Eu até podia cercar ela o quanto eu quisesse dentro da minha favela, mas sabia que não podia impedir ela de viver a vida dela fora dali do jeito que ela bem entendia. 

Quer dizer, poder eu até podia... mas eu não ia fazer. Eu não era homem de manter quem não queria estar do meu lado comigo. Ela nunca ia saber a porra que eu tinha feito por ela, nem o quanto eu tinha me enrolado por ela naquele caralho de tribunal por ela, porque eu nunca ia contar e a Nina podia seguir me odiando o quanto ela quisesse pelas porras que tinham acontecido. Meu gênio ruim tinha deixado só o pior de mim encabeçar tudo o que eu tinha feito com ela até o momento que eu tinha dado um fim na prisão dela. É, caralho, eu tinha feito mal pra ela. 

A ficha foi caindo naquela hora pra mim, e porra, não foi nada fácil. Olhei pra ela sem dizer nada, ainda segurando a mão esquerda da Marina. Meus olhos escorregaram para o brilho dourado da aliança com meu nome no dedo dela de novo. 

— Não vou fazer nada com aquele bostinha que você gosta tanto. Tu tem minha palavra. — Meus pensamentos me fizeram dar um passo pra trás. 

Ela concordou com a cabeça e deu as costas pra mim, andando pelo meio da rua pra frente de mim. Me virei pra ver ela se afastar, me sentindo mal pra caralho, mais do que eu gostava de admitir. Na minha mente, eu repeti que não tinha o direito de impedir ela de se afastar de mim, como um mantra pra me segurar e não me deixar ir atrás dela. Fiquei olhando as costas dela, parado no lugar como uma estátua, tentando entender o buraco que ia se formando no meu peito. 

Aquele jogo de gato e rato já tinha ido longe demais. Pra mim já tinha dado. A gente ia ficar se machucando e machucando os outros nessa loucura que a gente tava se envolvendo. 

Esperei que ela só sumisse da minha frente. Esperei ver ela sumir no horizonte, ver ela ir embora de novo. 

Mas ela parou na metade do caminho e virou pra trás, me olhando parado no mesmo lugar. Eu não me mexi e ela, apesar de olhar várias vezes pro outro lado, também parou do outro lado da rua, virando o corpo na minha direção.

A gente ficou se olhando por tempo demais, que nem dois otários desocupados. 

Ela passou a mão nos cabelos, em um gesto nervoso, deixando eles muito desalinhados. Um segundo depois, eu vi ela caminhando devagar até mim de volta. Engoli em seco, não desviando meu olhar do dela. 

— Eu... tava fugindo no meu ex-marido ciumento. Você quer fugir comigo? — Perguntou, cruzando os braços na frente do peito e me olhando de um jeito muito canalha.

Coração em GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora