[...]
Sabia o que o início ia ser foda, então, já fui me preparando psicologicamente. Logo que cheguei, não deu nem tempo de eu pensar a respeito dos problemas que eu eu tinha por ali, de tanta coisa que eu tinha pra fazer. Enquanto eu tava no carro, junto com a minha mãe, a caminho do Fallet, eu tava correndo atrás de ver quais os hospitais que o plano da Maria cobriam. Felizmente eu descobri que o melhor centro oncológico, com especialidade em leucemias e pediatria, ficava na Barra. E bom, ele cobria. Graças a Deus, se não eu ia falir... só eu sabia o quão caro era aqueles tratamentos numa rede privada.
Parei de falar, quando o carro começou a subir o Fallet. Eu nunca tinha estado ali, aliás, fazia muito tempo que eu não pisava numa favela. Olhei pra minha mãe de canto e ela pareceu tranquila, então, imaginei que a gente tava entre amigos. Nas suas, olhei meninas com roupa do estadual amarradas na barriga e lembrei da minha adolescência e de todos os bailes que eu já tinha pegado, de todo tiro que eu já tinha trocado em favela... No fundo, aquilo nunca tinha saído de mim. Foi assim que eu aprendi o que eu precisava pra ser bem sucedida no Paraguai.
Desci do carro na parte alta do morro, numa casa cheia de segurança na porta. Certeza que ali morava o meu pai.
— E ai, Rogier? — Sorri, abraçando o meu tio. — Tá pronto pra aposentadoria?
— Toda hora. — Brincou, indo falar com a minha mãe. — Tava na hora de tu dar as caras por aqui já.
— Vai achando que o sítio lá é um passeio no parque, filho... — Falei, entrando pela porta. Todos nós subimos até o segundo andar, onde um homem de aparência magra e pálida estava sentado numa cama. Carlos Mandarim, meu pai. Me assustei com o que eu vi... Porra, ele tava muito, muito diferente do que eu me lembrava, parecendo só uma casca do que um dia já tinha sido. Eu não consegui sentir pena dele, mas pelo menos não ia desrespeitá-lo num momento daquele.
— Oi, Nina. Que bom que tu veio. — Ele falou com a voz muito rouca, como se tivesse resfriado.
— Oi Carlos. — Sussurrei, não me aproximando muito. Minha mãe foi verificar como tava o soro dele, enquanto os outros homens que estavam por ali se levantaram pra me cumprimentar. Com muita simpatia, eu apertei a mão de cada um deles e me apresentei. Sabia que fazer as pessoas gostarem de mim era fundamental pra fazer a coisa dar certo.Descobri que quem tava administrando as favelas dele nos últimos era o Rogier e o Barnabé, que eram os caras em quem ele confiava, já que ele mesmo tava na merda. Antigamente, meu pai dominava quase toda a Zona Sul, agora ele tinha ficado só com uma parte ínfima dela, junto com as que estavam perto da zona central, que era realmente o 'braço forte' do pessoal dele. Tava na cara que a doença dele tinha enfraquecido o poder do grupo inteiro e tava difícil de manter até as que eles já tinham, por isso, os posses dele tinham encolhido até retroceder ao complexo de favelas onde eu tava, que englobava o Fallet, Fogueteiro, Prazeres e Santa Tereza, além das adjacentes, que eram tão próximas daqui que era fácil defender. Mineira e São Carlos ainda eram nossos, além da Santo Amaro e a Julio Otoni. Parecia muita coisa, mas não era. Territorialmente, eram favelas pequenas, de rendimento igualmente modesto em maioria.
— Você vai? Ficar pra assumir minhas favelas? — Carlos quis saber, depois de muita conversa.
— Vou... — Concordei com a cabeça. — O Rogier volta pro Paraguai, garante a droga pra mim aqui e vai ficar tudo certo, se os seus homens não resolverem me matar até lá. — Cruzei os braços.
— Ninguém vai te matar, Nina. Nós tá te esperando aqui há um tempo já, eu não tô mais aguentando levar isso aqui no tranco. Tu é nova, é esperta, tu vai melhorar tudo aqui de novo... — Parou de falar para tossir. Ele parecia mal de verdade. — O Barnabé foi meu escudeiro até aqui, ele vai ser teu fechamento também.
Olhei para o homem negro de meia idade, lá pelos seus 50 anos, sorrindo e acenando com a cabeça em agradecimento. Não, eu ainda não tinha nada a favor dele e nem confiava nas merdas que o Carlos me falava, mas a política da boa vizinhança ainda falava mais alto em mim.
— É por causa do Sítio do Pica-pau Amarelo? — Perguntei, bem humorada.
— É. — Ele riu. — Eu usava umas roupa estampada assim e teu pai achava que eu parecia o Barnabé do sítio.
— Não desfoca, Nina. — Chamou minha atenção e eu me virei pra ele de novo.
— Eu fico... — Reforcei. — ... mas eu tenho uma condição. Entre os frentes que tão nos teus morros, quem manda sou eu, faço questão de mostrar minha cara pra eles. — Disse, estalando os dedos das mãos. — Só que pros nossos inimigos, eu tenho que ter alguém com quem me esconder atrás. Não posso ficar dando a cara por aqui assim, acho que ainda lembra o porquê, Carlos.Ele suspirou e não disse nada.
— Eu tenho um problema pessoal com a gente da Rocinha, eu não posso dar mole por ali e morrer atoa. Eu tenho uma filha pra criar. — Falei com muita sinceridade.
— É uma boa, ué. — Rogier falou e Carlos concordou com ele. A tosse seca do pulmão do homem persistia. — Não acho que isso vai enganar eles por muito tempo, mas é uma boa por enquanto, po.
— Eu sei que é. — Concordei com a cabeça. — E só aceito se for assim. Barnabé, tá de boa se tu for essa pessoa? Deixar as pessoas pessoas pensarem que você é o chefe, enquanto eu rezo minha cartilha por trás do panos? Só pras pessoas de fora, claro.
— Nunca quis ser dono de nada não. — Ele brincou de novo, bem humorado. — Mas por mim de boa, se é assim que vai ser.
— Então é isso. — Concordei com a cabeça. — A gente vê como vai fazer isso mais tarde, depois que eu tiver uma palavrinha com o Rogier e...
— Nina, eu posso falar com você sozinho? — Meu pai perguntou, me interrompendo. Todos nos viramos pra ele. Minha mãe encheu um copo de água e deu na mão dele, enquanto pegou empurrou delicadamente o Rogier pra fora, chamando o Barnabé pra seguir eles. Quando a porta atrás de nós se fechou, eu suspirei, me encostando na parede ao lado da cama.
— Fala comigo.
— Alguma vez em todos esses anos você foi capaz de me perdoar pelo que aconteceu com o pai da sua filha? — Ele perguntou e eu fechei os olhos. Seria muito duro negar perdão à um homem que estava morrendo? — Eu sei que eu podia ter feito alguma coisa. Podia ter ligado, passado uma mensagem, mas eu não fiz... porque tava pensando só no mais conveniente, no mais fácil. Não fazer nada também é tomar uma decisão.
— É... Se omitir é uma decisão. — Concordei com a cabeça. — Eu não perdoei ninguém pelo que aconteceu com o Barbás. Aquilo foi sujo. Separou minha filha do pai dela e acabou com o meu nome nessa porra de cidade, hoje eu tô fugindo de tudo e todos.
— Então você não me perdoou?
— Não vou te negar meu perdão, porque você não vai viver pra ter ele no futuro. — Busquei toda a firmeza e força que eu tinha pra dizer aquelas coisas. — Tu reconheceu seu erro, então sim, eu perdoo você.
— Você me odeia? — Seus olhos cansados me encaravam. A luta estava sendo dura pra ele.
— Odiar você? — Cruzei os braços de novo e olhei pro teto. Aquela conversa tava sendo foda pra mim. — Eu já... te odiei. Hoje, eu não odeio mais... respeito a sua história, as coisas que você conseguiu. Me jogar de cabeça nesse mundo me fez entender que você só chegou onde chegou porque escolheu pelo conveniente. Isso é uma coisa que eu tô exposta também, um dia, eu posso escolher pelo mais fácil também. Eu não te odeio, Carlos.— Que bom. — Ele sorriu, perdendo o momento de felicidade em uma tossida seca. — Você vai ser muito melhor do que eu fui, Marina. Você é o meu legado.
— Vou fazer meu melhor pra fazer dar certo. — Prometi, concordando com a cabeça.
— Vem cá. — Ele chamou com a mão, batendo na cama.
Andei até lá e sentei perto dele. Carlos segurou minha mão e eu pisquei, mas não puxei.
— Eu amo você. Posso ter feito um monte de merda, mas desde criança, você sempre foi minha garotinha. — Falou e eu comprimi os lábios. Meu nariz ardeu... por algum motivo, aquele papo tava me dando vontade de chorar. Aquilo tava sendo mais triste pra mim do que eu tinha previsto no início... Ainda mais porque eu não podia repetir aquilo pra ele. Eu adoraria, mas a verdade é que meu amor por ele tinha ficado enterrado em alguma parte do meu passado.
Concordei com a cabeça, olhando pro teto e passando a mão nos olhos rapidamente.
— Você não me odeia, me se ressente pelo que aconteceu, né?! — Perguntou depois de um tempo.
— Como eu posso não me ressentir? Eu não posso mais andar livre por ai, porque todo mundo acha que eu sou uma rata traidora.
— Me desculpa. — Ele repetiu e eu fiquei em silêncio. — Já pensou em me matar por isso? Quando tava em Foz... — Ele perguntou e eu vi um tom de divertimento oculto na apatia da sua voz.
— Muitas vezes no início. — Confessei, dando uma risadinha também.
— Então você faria? Você me mataria? — Ele perguntou com humor.
— Você duvida? — Perguntei, sentindo um desafio.
— Não... — Ele falou sério dessa vez. — Por isso você é perfeita.
— Pera... — Parei de sorrir na hora e me afastei um pouco, olhando pra ele chocada. — Você não quer dizer isso.
— Quero sim, Nina. Eu tô cansado. Faz anos que eu tô vendo eu me destruir de dentro pra fora, agora nem sair dessa cama mais eu consigo. Pra mim, eu já cheguei no fim... — Começou a falar e eu tive certeza que o choque se alastrou pelo meu corpo todo. Me levantei num pulo.
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Coração em Guerra
Storie d'amoreㅤㅤ"Sou a morte, o diabo, o capeta, a careta que te assombra quando fecha o olho. Sou seu colete à prova de balas, seu ouvido à prova de falas... Eu vou tomar nosso mundo de volta." Djonga ㅤㅤㅤHá 5 anos ela foi acusada de trair o homem a quem ela amav...