— Eu sei e talvez eu tenha errado. Talvez, eu tenha corroborado com todas as suas paranoias e isso é culpa minha. Só que eu tava grávida e sozinha numa cidade onde uns 30 caras queriam minha cabeça e tinham como conseguir isso. A opção era ir pro Paraguai ou ficar socada debaixo da asa do merda do meu pai, o homem que causou tudo isso nas nossas vidas, por proteção. — Ela parou e negou com a cabeça, murmurando perdão e fazendo o sinal da cruz. Chegava a ser engraçado... me lembrei um tempo depois que o velho tinha batido as botas. — Se tu tivesse no meu lugar, o que tu ia ter escolhido? Comer na mão de um traidor de merda que podia te dar proteção ou ir embora? Não sei o que tu imagina, mas eu não conseguia nem olhar na cara do Carlos. — Perguntou ela. — Aliás, se eu tivesse ficado aqui com meu pai, tu ia ter acreditado que eu não tinha nada a ver quando saísse da cadeia?
Não, eu não ia. Eu não precisava responder pra ela saber a resposta.
— Foi muito mais difícil pra mim do que tu acha. Eu ia ser maluca se escolhesse passar por tudo o que eu passei lá no fim do mundo do Paraná, ao invés de viver do teu lado. Quem ia abrir mão de uma família perfeita pra ir se fuder lá na Ponte da Amizade? Não dá pra entender a lógica disso, mano. — Ela dizia em tom de desabafo. Eu sentei no banco de novo, só escutando. Queria mesmo ouvir da boca dela as coisas que ela tinha feito. Por anos, eu realmente quis entender o porquê dela ter destruído nossa família. As coisas que ela confessava não eram bem como eu imaginava, como eu queria ouvir.
— Aposto que tu devia morar num palácio do caralho e tá aqui pagando de sofrida. Ô Nina... tu sabe o que é uma cadeia, mas tu não tá ligada no que é a porra de uma cela de presídio de homem. — Estalei a língua, olhando como quem conhece o mundo todo e não se surpreende mais com nada.
— Não, mas eu imagino. Eu pensei em você sofrendo aquela época, puxar cadeia é barra pra caralho. — Ela disse e eu ri, tragando o cigarro de novo. — Mas tu chegou a pensar que eu podia estar sofrendo também? Os hormônios da gravidez quase me fizeram pular da merda da ponte... E eu quase morri no parto da Maria. Foi horrível.
Puxei o ar rapidamente, mudando de posição.
— Conta essa história aí, eu tô com tempo. — Falei, levantando e me encostando na parede de casa.
— O parto todo durou quase 24 horas. Eu não dilatava direito, só perdia líquido e sangrava. As contrações ficavam mais fortes e depois horas ficaram insuportáveis... Eu não queria ir pro hospital, porque na época eu tava meio paranoica com a polícia, mas ali as coisas não tavam evoluindo muito bem... — Começou, encostando a cabeça na porta. — Depois do que pareceu um milhão de horas sofrendo, eu só perdi as forças. A médica começou a desconfiar de sofrimento fetal e disse que minha filha podia estar morrendo. Aí o inferno começou de verdade, porque eu tinha que reagir pra fazer a Maria nascer. Eu nem sei de onde que eu arranjei pique pra fazer aquela última hora, mas foi horrível. — Ela passou a mão na barriga num movimento muito miúdo, mas eu reparei. — No final, não teve manobra que resolvesse, principalmente porque eu já tava esgotada. Teve que usar fórceps, a Maria demorou um pouco pra pegar cor... E pra coroar, eu quase não consegui ver minha filha direito quando ela nasceu, porque eu tive uma hemorragia e tive que enfrentar meu 2° pesadelo, que era o hospital.
Eu nem sabia como eu me sentia escutando aquelas coisas... Coisas que eu perdi da vida da minha filha. Era um momento que eu tinha que estar presente, mas ao contrário disso, eu tava numa cela há muitos quilômetros de lá, contando os dias que faltavam pra eu sair. Me dava angústia escutar aquilo... eu nem sabia como eu ia ter reagido.
— Deu certo no final. — Deduzi o óbvio em voz baixa.
— É, deu. — Ela concordou com a cabeça. — A Maria ficou bem... Eu fiz uma plástica depois e tudo ficou as mil maravilhas. Não tinha do que reclamar. — Um sorriso surgiu no seu rosto, eu percebi que ela queria rir.
— Plástica...? — Eu não tinha reparado nada diferente, não tinha cicatriz nenhuma. Não que minha capacidade de notar coisas fosse muito confiável na oportunidade que eu tive... — Onde?
Ela riu e levantou as sobrancelhas pra mim. Voltei na história pra fazer um check e a resposta pareceu óbvia. Tinha uma coisa que eu tinha percebido sim...
— É... — Eu quis rir, mas no fim, só coloquei o cigarro na boca. — Eu tava me perguntando como você tinha ficado mais apertada depois de ter sido mãe.
— Gostou? — Perguntou rindo. — Foi caro. No médico das artistas do Paraguai.
Neguei com a cabeça, deixando uma risada me escapar. Eu não queria ficar dando tanta corda pra ela assim, mas a verdade é que não dava pra esconder, era engraçado. Eu nunca ia ter imaginado aquilo... Ela era mesmo maluca. No fundo, eu senti que ela se orgulhava daquela história. Era uma marca dela, um cicatriz não visível que ela tinha. Dessas coisas, a gente sempre sentia orgulho por ter vencido, apesar das dificuldades. As dores que costumavam virar troféus na gente.
Eu também não imaginei que eu e ela ainda éramos capazes de conversar tão tranquilamente. Marina seguiu me contando sobre os primeiros meses da Maria, coisas sobre elas duas, como ela tinha descoberto caído de paraquedas na maternidade e feito um monte de merda por ser 'de primeira viagem'. Com todas aquelas histórias, coisas que eu não sabia, sobre momentos que eu não estive presente, ela me enfeitiçou outra vez.
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Coração em Guerra
Romanceㅤㅤ"Sou a morte, o diabo, o capeta, a careta que te assombra quando fecha o olho. Sou seu colete à prova de balas, seu ouvido à prova de falas... Eu vou tomar nosso mundo de volta." Djonga ㅤㅤㅤHá 5 anos ela foi acusada de trair o homem a quem ela amav...