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Engoli em seco, sentindo minha garganta queimar. Eu seria forte o suficiente pra fazer aquilo?

— Eu não posso só dar um tiro em você, Carlos. — Falei.

— Tu vai pensar num jeito melhor de fazer isso. — Disse, deitando de novo na cama, enquanto grunhia de dor ao se movimentar o mínimo que fosse.

Olhei ao redor e reparei no acesso ao soro dele, onde recebia as medicações. Lidando com a Maria desde cedo, eu já tinha aprendido o mínimo sobre cuidados básicos a doentes. Suspirei, pensando no que eu poderia fazer. Com as mãos tremendo, abri as gavetas todas do quarto e notei algumas seringas bem grandes. Peguei uma delas e me aproximei dele, me sentindo suar de nervoso. Eu era forte. Eu era forte.

Fiquei muitos e muitos minutos olhando pra ele e depois pro soro, com a seringa na mão. Era difícil eu não sabia como reagir frente àquilo. Era horrível... Meus olhos e nariz arderam e eu achei que fosse chorar, mas nada saiu de mim. Minhas mão tremiam violentamente.

Enchi a seringa de ar, testando o êmbolo não conseguindo voltar à sua posição normal, indicando que estava cheia.

— Eu sabia que tu ia ser forte. — Ele sorriu. — Essa é a minha indiazinha.

Meu lábio tremeu e eu hesitei de novo. No fim, eu me forcei a seguir em frente. Coloquei a ponta afiada da agulha no seu braço livre e de uma vez só, injetei lá o ar lá dentro. Rapidamente fiz de novo, injetando mais uma, pra ter certeza de que funcionaria. Ele tossiu mais uma fez, quando eu terminei e joguei a seringa com força para o outro lado do quarto.

— Vá em paz, Carlos. Que Deus te receba no paraíso... pai. — Engoli em seco, me sentindo horrível. Ele concordou com a cabeça, parecendo aliviado e feliz. Em paz... Daqui há um tempinho, se tudo desse certo, a coisa aconteceria. Saí do quarto, deixando-o sozinho lá dentro. Saí pra sala, onde as pessoas me esperavam com uma expressão tensa no rosto.

— Eu... preciso ir pra casa. Tenho que levar minha filha no médico hoje. — Falei, me sentindo meio sem chão, agoniada. — Rogier, amanhã eu venho pra gente conversar os detalhes sobre Foz e pra pensar no que a gente vai fazer sobre as favelas aqui, tá Barnabé? Eu tenho que ir lá.

Me despedi deles direito, pra não deixar muita pista do que eu tinha feito e saí com a minha mãe. Ela foi dirigindo dessa vez, dentro do carro, já longe da favela, eu não consegui me impedir de chorar em silêncio. Foi horrível. Pavoroso. Eu sentia meu coração apertado, dolorido dentro do peito. Eu só queria minha filha e minha cama depois daquilo...

Com a morte do Carlos, mais do que nunca eu ia ter que assumir as favelas dele. Logo, eu ia ser a dona de uma porrada de uma porrada de pequenas favelas. Se por um lado ia ser ótimo pra eu poder me proteger e ganhar dinheiro, por outro aquilo me parecia assustador pra caralho. De qualquer jeito... eu tava pronta.

[...]


As duas primeiras semanas passaram rápido. Eu nem vi como o tempo correu rápido, já que eu tava lotada de coisa pra fazer. É... O Carlos morreu 2 horas depois da nossa passagem por lá de embolia pulmonar. Atribuíram isso ao câncer e ninguém questionou nada. No dia seguinte eu subi o morro do complexo onde era a base dele, o Fallet, Fogueteiro e Prazeres e me intitulei a nova dona pra favela inteira. No final, eu realmente era o legado dele. Com Barnabé e o Rogier do lado, foi simples a passagem dele pra mim. Carlos tinha deixado o clima perfeito pra eu entrar sem problemas iniciais ali. Os cara do movimento aceitaram a minha liderança, as pessoas me receberam e isso foi o suficiente. A partir dali, eu comecei a trabalhar na minha base de apoio. Assim que eu tive acesso aos primeiros cadernos de contabilidade, vi o que eu podia fazer. Aumentei um pouco o dinheiro a tropa da favela recebia semanalmente, mandei investir no baile, que era a diversão do pessoal e planejei mais ações populares assim pelas próximas semanas. O objetivo era ganhar apoio não só mantendo as pessoas em quem eles confiavam, como o Barnabé, por perto, mas também fazendo eles gostarem de mim. Não só abaixarem a cabeça, mas fazerem isso porque queriam, porque me respeitavam.

Com a outra parte do dinheiro, eu mandei trazer arma direto do Paraguai. Sabia que mais um carregamento de AR-15 E AK-47 ia chegar lá no sítio por esses dias, já liguei e mandei segurar lá que eu ia pegar por preço de custo, praticamente. Eu precisava voltar a investir em armamento pro pessoal. Não que tivesse ruim, não tava. Aquele nosso núcleo ali tava muito bem protegido, mas mesmo assim, eu sentia que faltava pra fazer os outros nos respeitarem de novo. Pra ser grande, tinha que ter bico.

Eu, o Barnabé e o Rogier corremos todas as favelas adjacentes, conversando com os 'frentes' do Carlos e deixando claro pra todo mundo que, agora, eles respondiam a mim. Os frentes eram quem tava a frente das decisões do morro, podendo ele ser o dono ou não. Como eu era a dona, os gerente gerais das outras favelas eram os frentes e só respondiam a mim, já que os soldados respondiam a mim e as armas me pertenciam. Nenhum deles se rebelava pelo fato de que, se acontecesse, todos os outros se viraram contra ele e tomariam a favela de volta. Além disso, as drogas que abasteciam todos os outros passavam pelo morro matriz primeiro. O maior poder bélico era de lá também, onde saia a força que protegia todas os outros morros. Era questão de cooperação entre todo mundo, mas a verdade é que as ordens vinham de um só lugar. Agora, era de mim. Todos aceitaram, ainda que pra alguns tenha sido complicado entender que iam ter que acatar ordens de uma mulher. Ninguém falou diretamente algo sobre o meu sexo, mas eu vi a surpresa e a desconfiança, até algum desagrado, nos olhos deles. Com o tempo, eu ia reverter aquele quadro, sabia.

Acabei descobrindo que era bem parecido com administrar as rotas de contrabando. A lógica por trás era a mesma, apesar de ter suas particularidades. Eu já tinha visto o Barbás trabalhar muito e sabia mais ou menos como funcionava uma favela, então, peguei o ritmo bem rápido. Como o meu nome era sigiloso, coisa que deixei bem clara pra todos os gerentes, Barnabé despontou como a pessoa que se passaria por mim e a coisa funcionou bem. Assim, eu podia levar uma vida mais tranquila, sem preocupação com polícia e com os meus inimigos por enquanto. Logo no final da 1° semana Rogier partiu pro Paraguai e eu fiquei.

Enquanto isso, eu fui correr atrás do tratamento da Maria. Levei ela pros exames todos no centro da Barra e logo na segunda semana ela começou a radioterapia de novo. Eu sabia que, dessa vez, o ideal era entrar de uma vez na quimioterapia, porém eu ainda tinha algumas questões sobre isso pra resolver. Primeiro, a casa onde viveria a Marizinha nesse tempo. Depois que eu descobri que os morros ao redor da casa da minha mãe, Babilônia e o PPG eram do Barbás, eu surtei. Mandei elas esvaziarem o apartamento na mesma hora e vir pro morro, onde eu teria certeza que elas estavam 100% seguras.

Estávamos vivendo provisoriamente na casa que era do Carlos, mas ficou mais que óbvio que ela não atendia as nossas necessidades. No fim, ela ficaria pra minha mãe e meu irmão e eu tava correndo atrás de comprar uma casa grande mais ali pra cima, onde eu ia morar com a Maria. Ai entrava a outra questão questão. Eu precisava de uma casa bem no alto, onde os locais de "coleta de lixo" e os esgotos tivessem bem longe, porque durante a quimioterapia a imunidade tendia a ficar baixa, então, a limpeza ia ter que ser total. Eu acabei encontrando uma que me agradou, ela parecia um prédio, era bem espaçosa, tinha 2 andares e 1 terraço, ficava quase no início do morro. Mesmo assim, uma estrada em ladeira dava lá em cima, o que significava que dava pra ter acesso fácil de carro. Quase tudo perfeito, exceto que precisava de uma reforma das brabas e essa levaria até um mês pra terminar, mesmo com eu tendo contratado uma equipe enorme pra trabalhar.

A segunda questão era que a Maria era super apegada aos seus cabelos e morria de medo de perder eles, ela chorava sempre que a gente entrava no assunto. Descobri que dava pra evitar isso com uma série de cuidados, entre eles, uma técnica chamada crioterapia, que consistia em reduzir a temperatura do couro cabeludo pra reduzir os danos causados pelos quimioterápicos por lá. Além disso, tinha um tônico pra passar no couro cabeludo... enfim... era complicado e eu tinha que correr atrás de tudo isso. Pra isso, a radioterapia nos ganhava tempo, evitando que o estado dela piorasse. Ao longo da semana, nós iríamos descobrir com quais medicamentos e suas doses ela iria iniciar tratamento, além disso, eu já tava desembolçando um dinheiro pra dar tudo do bem e do melhor pra ela.

Tudo parecia bem... de certa forma estava, dentro do possível. Agora que eu já estava estabelecida, tava pensando em como eu ia ligar pros meus irmãos de criação, Dalila e Wallace, e avisar que estava ali. Tava foda de eu conseguir ver eles na nossa situação atual... tava difícil até de eu conseguir ver meu irmão biológico, o Andrei, que parecia ter tomado chá de sumiço. Ninguém viu.

Foi ali, naquele momento, quando as coisas finalmente começaram a estabilizar pra mim, que a minha mente começou a me trair. Pra chegar a Barra com a Marizinha, eu passava pelo Túnel Zuzu Angel... e pela Rocinha. Na verdade, no caminho inteiro eu passava pelas favelas que agora eu sabia que eram do Barbás. Meu coração ficava apertado sempre que eu via aquelas favelas e me lembrava dele... me lembrava de nós. O golpe mais baixo vinha da Rocinha, sempre. Lá eu tinha vivido tudo, conhecido o mundo sem nunca ter saído do lugar. O tempo tinha passado, mas ela parecia igual e me fazia imaginar que eu ainda era a mina de 20 anos que sassaricava por ali com um fuzil atravessado no peito, correndo atrás do amor da sua vida. Eu sempre abraçava forte a Maria nessas horas... Ela era o resultado de tudo aquilo. No final, ela também era uma filha da Rocinha, como eu.

Era foda pra mim pensar que o Barbás era dono de tudo aquilo agora. Como ele devia estar? Porra, ele sempre teve um porte de rei, sempre soube como comandar, era um líder nato... mas fisicamente, como ele poderia estar? E o coração dele? O Will estava bem? Ele tinha casado de novo? Arrumado uma outra família... uma outra mulher pra colocar no meu lugar?

Esses pensamentos começaram a me perseguir e sufocar. Não havia mais um dia sequer que e não passasse por ali e não me sentisse atormentada. Eu precisava ver ele outra vez... só pra entender que ele ainda estava ali e pra fixar os seus traços na minha memória, pra que o tempo não apagasse... se não eu ia ficar maluca, eu ia morrer. Meu coração não ia me deixar em paz até que os meus olhos pudessem ter a visão dele de novo, mesmo que por um só momento. Eu precisava ter certeza de que ele tava bem, que tava feliz e vivendo sua vida.

Assim, eu comecei a maquinar um jeito de chegar até ele. 

Coração em GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora