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— Nina! Nina, caralho! — Dalila gritou ao pôr ao olhos em mim, se pendurando no meu pescoço. Do lado estava o irmão dela, Wallace. Eu abracei eles com força, finalmente me sentindo segura depois de todos aqueles anos. É como se nada tivesse realmente mudado. Era difícil ter a percepção de tempo quando tudo ao redor parecia exatamente a mesma coisa.

Eu tava puta impressionada com a recepção que eles me deram, tanto que eu nem falei nada nos primeiros minutos. Subi as escadarias do morro muda, só parando pra observar o cenário ao redor. Minha favela continuava linda pra caralho, várias lojas tinham sido abertas ali na Ápia e o fluxo de gente parecia tão grande quanto na minha época. A verdade é que no rosto de cada uma uma das crianças, eu procurava os meus irmãos. Queria muito ter a sorte de esbarrar com algum deles por ai, dizer que estava livre e que amava os pivetes, já que eu não podia ir visitar eles voluntariamente... puta ilusão minha. Talvez o melhor fosse eu continuar longe mesmo, afinal, eu não era uma boa influência pra ninguém e não tinha nada a oferecer pros meninos no momento, além disso, a mãe deles não gostava mais de mim.

Na entrada da Rua 2, uma pichação no muro me chamou a atenção. 'Bem-vindo a Síria'. Isso e as marcas de tiros ocasionais pela parede mostrava que as coisas não estavam tão bem por ali.

— Fiquei sabendo que o Caburé virou o dono. Tá dando merda pro lado dele? — Perguntei pro Wallace.

— É, tá foda. A facção não gosta tanto assim do CR e tem gente querendo tomar a favela por achar que o cara é cuzão. A gente tá tomando dos dois lados aqui, dos alemão e da Polícia. — Contou por alto, querendo mudar de assunto logo depois.

— É, mas deu uma acalmada agora. — Dalila estreitou os olhos, querendo intimidar o irmão a parar de falar. Eu acabei percebendo que aquele era meio que um assunto proibido entre os dois, possivelmente proibido pra mim também. "Não era coisa pra se falar na rua". Deixei aquele papo pra depois, já que pouco tempo depois, eu cheguei na casa que os irmãos dividiam. Dalila morava em cima, Wallace embaixo.

— Tu vai ficar um tempo morando aí com a Dalila, até a gente ver como vai ficar tua situação, tá ligada? — Disse o Wallace pra mim, deixando a gente na porta de casa. No peito dele, estava atravessado o .762. — Se acomoda ai, minha casa é tua casa. Eu tô indo passar lá na Rua 1 pra avisar pro CR que tu tá de volta. Vai se acomodando ai, enquanto isso.

Antes que eu pudesse falar alguma coisa pra ele, Russo subiu na moto e saiu com ela roncando na direção contrária.

— Mas eu... Corno demais. — Xinguei em um tom de brincadeira, meio puta por ter sido ignorada, mas acabei acompanhando a Lila pra dentro de casa. Eles tinham separado um quarto nos fundos da casa pra mim, onde tinha uma mobília simples. Eu já estava contente por ter um guarda-roupas pra eu organizar meus bagulhos, não tinha do que reclamar. A cama tinha um colchão vazio e a janela dava vista pro barranco na parte da trás de casa, dava pra ver o sol nascer, era legal.

Porra, era estranho estar de volta na Rocinha e não poder ir pra casa que eu cresci. Mesmo assim, estar com a Lila e o Wall, pessoas com que eu convivi a minha vida toda, era quase como ter o sentimento de estar reunida em família novamente. Quase.

— Gostou? — Dalila perguntou, parando na porta do quarto.

— É bonito. Eu não tenho nem como te agradecer por me receber, piranha. — Comentei, colocando a última muda de roupa na prateleira. — Sem vocês eu ia estar na rua... Ou ia ter que bater na porta do Caburé e eu tenho certeza que ele ia me jogar na rua da mesma forma.

— Ih, tá suave, tu é minha irmã, garota. Claro que eu ia te socorrer. Fica ai o tempo que tu precisar, até tu arranjar um emprego e pá... até tua vida tá direita.

— Emprego. — Dei uma risadinha desgostosa. Emprego... onde eu ia conseguir emprego agora que eu tinha a porra da ficha suja por tráfico de drogas. — Vou demorar um tempo, tu sabe... Porra, eu nem tirei minha carteira de trabalho ainda.

— Relaxa ai, po. Tem ninguém te expulsando não. Toma o teu tempo, vai com calma, Nina. Eu ainda sou tua melhor amiga e vou te ajudar. — Ela sorriu pra mim, me puxando pra mais um abraço caloroso. Eu tinha sentido falta dela pra caralho. — Ó, vai terminando de arrumar suas coisas ai que eu vou precisar dar um pulo lá na Barcelos. Fiquei de ajudar na endola pro baile de sábado e nem dei as caras lá ainda. A casa é tua, 'cê' sabe. — E mandou um beijo com a mão, saindo correndo pra buscar a moto e ir dar os seus corres.

Eu ainda não tinha tempo de perguntar como andava a situação da Lila, mas parecia que ela ainda se envolvia só nos bastidores, na endola, na transporte dentro da favela, as vezes até na venda quando faltava pessoal. Diferente do Wallace, que era o frente da Dioneia e um traficante reconhecido. Eles dois era irmãos, muito parecidos em alguns aspectos, muito diferentes em outros. O Wall era um cara gente boa pra cacete, mas nunca tinha apoiado a Dalila em entrar pro tráfico de cabeça como ele fez. No fundo, eu sabia que ele tinha medo de rolar com ela a mesma coisa que tinha acontecido comigo: se sujar pro resto da vida por ter se envolvido com os porcos.

Larguei as poucas roupas que faltava ainda na minha mala e me pendurei no batente da janela, olhando a vista da favela lá fora. Continuava grande, forte, crescia bonita... Me dei conta, naquele momento, que eu tinha sentido falta de viver as minhas loucuras ali. O mundo fora do ninho era bem pior do que parecia, mesmo que por aqui não houvessem só flores e jasmins. O sol estava começando a se pôr e nuvens escuras avançavam sobre o céu agora. Fiquei ali apreciando a vista e pensando a respeito do meu próximo passo... Agora que eu estava livre, eu tinha também uma dívida alta com o Dono do Morro e eu não fazia ideia de como pagar.



*14: Artigo 14 do Estatuto do Desarmamento. Porte ilegal de armas.
33: Artigo 33 do Código Penal. Tráfico de drogas.
35: Artigo 35 do Código Penal. Associação ao Tráfico.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora