Eu quase nem ouvi o que ele falou, tamanha a concentração que eu tava pra ficar acordada. Meu cérebro tava processando as coisas devagar, uma coisa de cada vez, as mais importantes primeiro. Naquele momento, tudo o que eu precisava era conseguir respirar, era conseguir não sucumbir à dor, era estar ali pra não me deixar perder no meio das mentiras do Misael. Eu tinha que me fazer presente.
— Pega uma água pra ela, ô. — Ouvi o meu anjo dizer. — No meu carro tem uma garrafa, pega lá.
E um tempo depois, trouxeram uma garrafinha plástica com água dentro. Eu vi ele balançar aquilo na minha frente e eu concordei com a cabeça, não sabia exatamente pro que. Minha boca estava com um gosto horrível de ferro. Eu até sentia o cheiro de sangue, além do amargo próximo da garganta. A verdade é que eu sentia um monte de coisas, nem sabia mais onde estava a dor de verdade, onde estava o sangue, não sabia nem onde eu tava.
Tudo ao redor ficou meio distorcido, minha respiração junto ao meu coração estavam em um ritmo tão acelerados que eu consegui os ouvir martelando dentro da minha mente, enquanto ofegava violentamente. O homem até tentou me dar a água... ele levantou minha cabeça e derramou o líquido por entre os meus lábios, só que eu não consegui engolir e terminei cospindo a maior parte fora. A parte que molhou o solo cru embaixo dos meus pés tinha um aspecto meio sanguinolento.
— É pra soltar a menina, Rogier? — Perguntou um deles das minhas costas. Eu senti o roçar das cordas no meu pulso com mais uma onda de ardência. Quis me remexer em desconforto, mas se eu saísse da posição que eu tava, a dor no abdômen ia me fazer chorar que nem criança.
— Solta ainda não, que ela vai cair. Deixa o patrão chegar pra ver ela primeiro. — Mandou. — Se liga, chega no Pirraça lá fora e manda ele dar um rolé, não ficar marcando aqui de bobeira não. — Disse, afastando o outro de mim. — Melhor, vai todo mundo. Fica ninguém aqui não, deixa só eu. Vai, rala daqui logo.
E num ritmo apressado, a casa, que antes estava cheia de homens se divertindo às minhas custas, se esvaziou. Não havia uma só risada ou gracinha, só o silêncio sepulcral do vazio. Num estalar de dedos, mais ninguém estava ali.
Nem um segundo depois, eu ouvi uma voz que até então, achei que só tinha ouvido algumas vezes na minha mente. Uma que não tinha estado ali até o momento.
— Que houve, parceiro? Eu não falei que não ia esquentar minha cabeça com essas porras hoje? Cadê o Pirraça? — Perguntou em um tom meio autoritário. Na hora, eu recobrei ao menos o mínimo dos meus sentidos.
Olhei pra cima pra ver a aparência dele, o modo como ele se parecia. A primeira coisa que eu notei foi a cor... A cor dele. Morena. Meus olhos não estavam se focado em nada mais, então ficava difícil conseguir ver nele o que eu queria.
— É Marina o nome da tua filha? — Perguntou de uma vez.
— Por quê? — Não respondeu, mas pegou a identidade que o outro estendeu na sua direção, olhando com atenção ela inteira. Desde a foto, ao meu nome, data de nascimento... A filiação. Ele ficou um tempo muito grande lendo e relendo aquilo, intercalando com olhares pra mim.
— Que isso aqui, Rogier? — Disse, andando muito lentamente na minha direção e abaixando pra me olhar direito. — Marina? A minha Marina? — Acho que era uma pergunta pra mim. De um jeito, ele estava me perguntando se eu era quem ele pensava, com a incredulidade transbordando em cada passo ou palavra.—Você lembra... de mim? — Perguntei em um tom baixo, sentindo a respiração se acelerar ainda mais pelos segundos seguintes. Ele segurou meu queixo e levantou meu rosto, foi ali que eu consegui ver o rosto dele pela primeira vez e, ele, o meu depois de adulta.
Tentei entender os sentimentos que passaram pelos seus olhos. No início, só vi a dúvida em seus olhos semicerrados. Depois, ele os arregalou e seu queixo caiu, e ai engoliu em seco, franzindo o cenho e piscando várias vezes.
— Eu nunca esqueci de você... — Disse, no mesmo tom que o meu, passando o dedo indicador com muito cuidado sobre o meu rosto. — Filha.
— Ah... — Um murmúrio incompreensível de puro alívio saiu pela minha boca, e eu voltei a tombar pra frente. Eu não caí, já que as mãos ainda estavam amarradas nas minhas costas, me prendendo à cadeira. Ele veio me aparar com a mão livre.
— O que aconteceu contigo? — Perguntou, olhando pro Rogier, que deu de ombros. — Me ajuda a soltar ela aqui, vem. — Chamou o outro, se ajoelhando na minha frente pra mexer no nó das minhas pernas.
— Foi só o proceder. Os moleque não tinham nem como saber, não é culpa deles. — Explicou.
— Só tá você aqui por isso? — Perguntou.
Depois daquilo, eu simplesmente relaxei, toda a tensão do meu corpo e o medo de morrer se desfizeram como fumaça. Eu me senti segura ali e a adrenalina cessou nos segundos seguintes. Lágrimas gratas deixaram os meus olhos em abundância, ao passo de que eu me sentia ficando mole. Não tinha mais nenhum razão que fizesse o meu corpo gastar a pilha reserva pra me manter acordada, então, uma brusca sonolência foi me abraçando muito rapidamente. Pisquei, tentando afastar o peso sobre as minhas pálpebras, mas não tinha jeito. Sabendo que tinha vencido, eu simplesmente me entreguei ao descanso dos justos por algumas horas.
[...]
Um feixe de luz aqueceu o meu rosto e a sensação me despertou num pulo. Pulo esse que expôs todos os muitos pontos doloridos no meu corpo.
— Ai... — Reclamei, me apoiando nos braços pra sentar na calma. Olhei ao redor com os olhos que ainda se ajustavam à claridade. Era um quarto comum, bastante bonito até. Tinha uns gaveteiros espaçosos do outro lado, umas plantas penduradas no teto e até uma TV de 32' acoplada à parede. E estava de dia... Onde eu tava? E que porra de dia era hoje? Me agitei, tentando me levantar. — Cacete. — Xinguei, me sentindo uma velha com problemas nas juntas.
— Boa tarde. — Uma voz feminina disse e eu virei pra ver uma moça baixinha na porta. — Vou avisar pro teu pai que você acordou, tá? — E saiu sem nem me dar tempo de responder.

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Amor na Guerra
Romanceㅤㅤ ㅤ"Geral quer ser rei, conspiram pro tempo que não espera. Impérios caem com novos reis, os tempos passam a ser de guerra." MC Marechal ㅤㅤ ㅤO sonho do moleque é ser chefe, o do vapor, do gerente e do segurança também é. O sonho do chefe é sobreviv...