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— Eu tô bem. — Ela falou, tossindo pelo esforço que gritar provocava nela. — Eu vou viver, eu tô bem. Não pegou órgão nenhum, eu sei. — Murmurou e eu me esforcei pra acreditar. Lila era técnica em enfermagem, devia saber o mínimo sobre aquilo pra falar com alguma propriedade. — Se tivesse pegado eu já tava morta.

— Meu Deus, graças a Deus. — Coloquei as mãos dos dois lados do rosto dela, beijando a sua testa com força.

— Eu só... tô sangrando muito. — E parou para tossir novamente, se curvando sobre o próprio corpo. — Me leva pro hospital e vai ficar tudo bem, eu não consigo andar... — Contou.

— Levo, levo... claro que levo. — Falei, meio desesperada, tateando o corpo dela pra ver se tava realmente tudo ok e voltando a pressionar o ferimento à bala, pra tentar manter o sangue dentro dela. — Túlio! — Chamei e ele veio correndo ao nosso encontro.

— Que isso, cara?! — Se chocou em ver a Lila cheia de sangue.

— A gente precisa de um carro pra levar ela pro hospital agora. Arranja ai, pelo menor de Deus. Rápido que ela tá perdendo sangue. — Pedi, o tom aguda por causa do choro que se acumulava nos olhos e embargava a voz.

— O morador foi tirar o carro dele ali já. — Um dos sobreviventes da escola falou e eu concordei com a cabeça. Demorou poucos minutos até realmente parar um carro na rua, Túlio veio na nossa direção pra pegar ela no colo. Essa hora, mais um grito, beco à dentro, foi ouvido. Um grito alto e de dor, à plenos pulmões, rasgou o ar à nossa volta.

— Vai ver sua, mãe, Nina. — Dalila falou com um pouco de dificuldades, a boca dela parecia seca. — Ela tá ai pra dentro com os seus irmãos.

Me afastei pro TK pegar ela, que chorou quando ele a levantou do chão. A expressão de dor vinha do quadril, que tava sendo movido sem a devida imobilização. De qualquer maneira, naquela hora não dava pra pensar em mais nada. A gente só tinha que levar ela pra um hospital o mais rápido possível. A UPA devia estar funcionando hoje... pelo menos pra prestar os primeiros socorros.

Parei um instante pra ver ele colocar ela no carro e mandar um dos que tinha vindo com a gente seguir com ela pro pronto socorro. Aí, um segundo grito, seguido de um choro alto me despertou do meu transe... a minha mãe... Túlio foi na frente, avançando com cautela pelo beco e eu o segui de perto, meio desnorteada. Nem a arma eu consegui erguer, de tão longe que a minha mente tava. Onde tava minha mãe? Meus irmãos? Era ela quem tava chorando daquele jeito? Eu só consegui pensar no pior...

— Cadê eles, Túlio? — Perguntei, levando as duas mãos à cabeça e olhando ao redor. Quando eu ouvi a mulher gritar de novo, foi quando conseguimos localizar eles.

Pensar o pior era muito, muito diferente de ver exatamente o pior acontecer bem diante dos seus olhos. Nada no mundo podia me preparar pra cena que eu vi e que ia ficar marcada como um rasgo profundo no meu coração pro resto da minha vida. Perder... Acho que ninguém tava preparado pra perder. Eu, logo eu, que já tinha perdido tanto, que já tinha perdido um, não tava preparada pra deixar mais ninguém ir.

A vida, porém, quase nunca leva os nossos desejos em consideração quando está seguindo o seu rumo. Principalmente... a vida não é justa.

Caí de joelho, com os olhos arregalados e a boca aberta, buscando o ar que me faltou na mesma hora que eu vi o vermelho. Era como se minha garganta tivesse fechado quando o choro e a dor finalmente arrebentaram em mim como uma onda... Vindo à tona como um tsunami, que me arrastava pra longe e me fazia afundar e afundar em águas profundas...

Minha mãe estava curvada sobre alguém, com as mãos cheias de sangue. Ela chorava alto, os ombros balançavam e ela escondia o rosto no antebraço. Embaixo dela, um menino deitado em uma poça de sangue. O corpinho pequeno me deixou saber exatamente quem era que estava ali, só podia ser o meu caçula, o Jean... O Jeanzinho. Solucei, sentindo as lágrimas descerem quentes enquanto eu procurava os outros. Andrei e Luan estavam sentados mais a frente, parecendo perdidos. Procurei por algo que se parecesse com um machucado, mas nada. Eles estavam bem... Mas o Jean...

Da minha garganta só saíam grunhidos e assovios incompreensíveis. Dor... Minha cabeça girou, eu não tava sabendo lidar, não tava conseguindo ligar os pontos e entender o que tava acontecendo. Engatinhei até minha mãe, olhando para o meu irmãozinho ali, jogado como se não fosse nada, como se não fosse alguém. Solucei, inconsolável, sentindo como se tivesse um bicho me comendo por dentro. Era uma dor inexplicável, era incontrolável, eu não queria aceitar. Eu não ia aceitar aquilo. Porra, o meu irmão tinha quase 10 anos. Não tinha nem fechado um década ainda, caralho. Ele era uma criança, um menino que não tinha visto nada das coisas boas que vida podia oferecer ainda. Jean não podia morrer sem ver que o mundo era bom, que a vida ainda valia a pena ser vivido.

— Je. — Chamei, me abaixando e encostando minha testa na dele. — Je, fala comigo. — E não obtive resposta nenhuma. — Jean, fala comigo, meu amor. — Pedi de novo, colocando as mãos sobre o buraco enorme que tinha no peito dele. Pressionei a palma sobre aquele ferimento e notei como o sangue jorrou pelo outro, que tava mais pra baixo, próximo da lateral da barriga. Eu não tinha notado até então. Pisquei, tirando a mão na hora. Nessa hora, olhei pros meus joelhos e notei o vermelho por baixo de tudo. Ele tinha perdido muito sangue... — Mãe, a gente tem que levar ele pro hospital agora. A gente tem... — Falei e ela não me deu atenção. Continuou, debruçada sobre ele. — Mãe, a gente tem que levar ele agora, é sério. Mãe! — Chamei mais alto, tendo a sensação de que ninguém estava me ouvindo direito.

Ai veio o desespero. Eu não sabia como controlar o sangramento, não sabia como fazer ele parar de se desmanchar ali nas minhas mãos. Fiquei ofegante, sentindo os pulmões queimar como se tivesse correndo alucinadamente... Arregalei os olhos e virei meu rosto pra trás, vendo o TK.

— Túlio, me ajuda aqui. Ele precisa de atendimento... — Pedi, com a voz esganiçada pelo choro. — A gente tem que levar ele. — Insisti, ao ver que ele não tinha se movido do lugar. TK não falou nada, só negou com a cabeça, com a expressão mais infeliz que tinha no rosto. — Túlio, me ajuda aqui porra, ele tá morrendo, porra. — Gritei, balançando as mãos em agonia.

— Nina... — Ele disse num sussurro, não conseguindo completar.

— A gente tem que fazer alguma coisa. — Reclamei, me tremendo inteira. Era como se eu tivesse com frio, muito frio. — Vamo, Túlio.

— Não tem o que fazer mais, Nina. — Ele negou com a cabeça, passando a mão nos olhos. Ele tava chorando?

— Como não tem? Como... — Olhei ao redor, as expressões de todo mundo... a aceitação da minha mãe... Luto.

Olhei pro Jean de novo, passando as mãos pelo rosto dele. Morno... Não quente, morno. Os lábios estavam sem cor, o rosto inteiro parecia meu pálido. Ele parecia com frio? Parecia. Eu tava com frio também... Ele tava morno. Porra, morno. Morto.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora