[ESPECIAL] Nina

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TIJOLINHO POR TIJOLINHO

"De tijolinho por tijolinho, vou reformar seu coração
E vai ter amor espalhado nas paredes, teto e chão"



Seguir em frente não foi fácil, mas até ai, o que nessa vida é simples? Nada. Especialmente na minha. No meu caminho tinha tantas pedras que meus pés chegaram na linha de chegada completamente destruídos. De qualquer maneira, aceitar a derrota não era uma opção pra mim. Eu fui embora da minha casa com o coração partido, sem nem ter tido uma chance de dizer adeus, mas eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, eu ia ter que me reerguer e me reconstruir.

Quando eu cheguei à Foz do Iguaçu, no extremo oeste do Paraná, eu tinha comigo só o meu celular e o canhoto da passagem só de ida para lá. A família do meu pai tinha uma sítio gigante nas extremidades da cidade, onde todos conviviam. A maior parte deles já eram idosos, poucos eram os filhos que se interessavam pelo "negócio da família". A maior parte deles pagou boas faculdades para os herdeiros e eles foram viver a vida longe dali, restando só os patriarcas, alguns velhos demais pra querer continuar trabalhando na ilegalidade. Ali, como Rogier me explicou, era o lugar onde a carga era armazenada, pra depois ser distribuída para aqueles que iam levar os tijolos de droga camuflados em carros de passeio ou carretas de outros produtos.

O que mais me impressionou foi justamente como uma família, aparentemente normal, dividia o espaço do seu grande terreno com pilhas e pilhas de droga, algumas vezes de armas também, que alimentavam uma guerra sangrenta no lugar onde eu vinha. Tudo começava ali... num sítio comum no interior do país...

Quando Rogier me apresentou como sobrinha dele e filha do Carlos, eu fui recebida como uma princesa por aquelas pessoas que nunca tinha visto na minha vida. Era uma gente muito festiva, que gostavam de curtir a velhice entre si, relembrando os tempos de juventude e todas as aventuras que tinham vivido. Acabei descobrindo que foi daqui que saiu o Mandarim, de uma família de contrabandistas. Depois, quando ele resolveu vender ele mesmo droga à varejo, ele comprava dos seus familiares a um preço bem abaixo do que todos os outros pagavam. Esse, talvez, foi o grande segredo do seu sucesso. O que fez o Carlos grande foram os velhinhos dessa família que, há pelo menos 50 anos, passava produtos de forma ilegal pela fronteira.

No começo, era de tudo um pouco: cigarros, cachaças, absinto, eletrodomésticos falsificados... Depois, quando o tráfico de drogas se tornou relevante, eles começaram a transportar maconha e haxixe. Depois veio a cocaína, que mudou a vida de todos eles. Foi a pasta base, vinda de vários países como o Peru, a Bolívia e a Colômbia que mudou a vida de todos eles pra sempre. Contrabando sempre rendeu dinheiro, mas com o "branco" era diferente, porque aquilo sim dava muito dinheiro. A demanda pra abastecer os centros do Brasil saltou de um ano pra outro e não parou de crescer nunca mais, por isso, eles largaram os seus empregos e passaram a viver exclusivamente como contrabandistas na fronteira, agora transportando seus "produtos" em escala quase industrial.

Nos primeiros dias, eu fiquei fascinada pelas histórias deles. Nós nos demos bem muito rapidamente e acabou que o clima festivo que se instaurou na casa impediu que eu me concentrasse no que eu realmente deveria saber. Só lá pra segunda semana, Rogier realmente contou pra eles que eu era quem iria estar a frente dos negócios da fronteira e que, dali há alguns meses, quando eu estivesse pronta, eu poderia substituir o tio Aramí. Por sua vez, o senhor em seus quase 70 anos já demonstrava muito cansaço daquele ritmo de vida agitada e, por isso, procurava por um herdeiro de seus conhecimentos. Como Rogier, que tinha sido o seu aprendiz na juventude, não tinha interesse em viver no Paraguai por enquanto, ele se encontrava sem opção a não ser continuar. Assim, quando eu me ofereci como sua aprendiz, ele quase chorou de felicidade, sabendo que finalmente ia poder se aposentar em algum tempo.

Dali em diante, eu passei a acompanhá-lo em sua rotina "profissional" todos os dias, me conectando aos contatos dele e me familiarizando com o trabalho. E putz... era muito trabalho. Eu nem imaginava o quão infernal era o caminho que a droga fazia até chegar ao Rio pra ser vendida lá. Primeiro, a gente ia negociar com os fornecedores diretamente no Paraguai, que, ou eram os próprios produtores ou os que pegavam direito da fonte e vendem o produto 'in natura' pra nós.

Daí, depois de comprar, vinha o passo 2, que era fazer a droga atravessar a fronteira. Não era tão simples quanto parecia, apesar da segurança da Ponte da Amizade não ser assim tãaaao forte. Pra não correr o risco de perder tudo, caso houvesse uma batida, a gente dividia a carga. Uma parte, em geral os tijolos de maconha, iam nos compartimentos debaixo de ônibus de turismo, entre as malas das pessoas dava pra colocar uma quantidade grande de droga. Usávamos muitos deles e pegávamos na primeira parada do outro lado da fronteira, quando o motorista tinha de parar pra fazer uma "checagem". Tudo era bem prático, porque já colocávamos tudo em malas. Era só abrir, tirar e o busão seguia viagem. A pasta base, como tinha um valor maior de mercado, não dava pra fazer um meio tão simples. Assim, ela a gente passava por barcos a motor pelo rio Paraná, uns quilômetros afastado da ponte e num horário pouco visado, como o início da manhã. Tudo pra não chamar a atenção. Claro que um suborno era devidamente pago às autoridades pela vista grossa, mas de qualquer maneira, não podia dar nas vistas. Depois, nosso pessoal recolhia tudo e armazenava no sítio. De lá, ficava uns 3, 4 dias, onde a gente embalava melhor os tijolos, pra aguentarem a viagem até o Rio sem danos, e marcava eles com iniciais, dependendo do lugar pra onde iria.

Um monte de carros, de placas vindas de diferentes estados, levavam o produto até o cliente final. Todos iam em horários, caminhos diferentes, na medida do possível, pra minimizar o número de apreensões. Usávamos alguns caminhões também, sempre mascarados com outros produtos.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora