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Fiquei na esquina do nosso beco, vigiando pra ver se vinha alguém com a arma na mão. A verdade é que a rua do valão geralmente era movimentada, mas por causa do tiroteio intenso que tava rolando e reverberando por toda a comunidade, absolutamente ninguém estava na rua. Barbás, aproveitou pra ir até o canal e jogar o corpo lá, que rapidamente foi carregado pelas águas do valão. Geralmente ali era bem raso, mas por causa das chuvas, estava cheio e com uma correnteza considerável, o que nos ajudava na desova. Ele voltou com uma expressão de acabado pro meu lado e me puxou pela mão no caminho de volta, segurando o fuzil pra frente com o outro braço.

— Tu sabe que vão achar ele assim que chegar lá em baixo, né?! — Perguntei.

— Não quero esconder o corpo, quero ganhar tempo pra gente. — Falou, dobrando mais uma esquina e pegando uma viela paralela e desaparecendo por bifurcações e espaços estreitos entre as casas. — A gente vai ter que sumir por umas horas, vai desligando teu celular ai já. Desliga o meu também, tá no meu bolso. — Falou, enquanto subíamos a favela para um ponto mais acima. Andamos pra caralho, enquanto ele ia pegando vários caminhos tortuosos e subindo um monte de ruas até o final de Dioneia e ele não quis parar por ai. Entramos finalzão da Paula Brito, quase na subida da pedra do Portão Vermelho, e seguimos mais ainda.

— Aqui não é área nossa, Barbás. — Falei, assustada que fossemos pegos pelos caras do M7.

— Aqui não é área de ninguém agora. — Rebateu, entrando num beco estreitíssimo e sem saída ali perto. Nem eu sabia mais onde a gente tava, ali era um lugar tão no fim do mundo da Rocinha que eu nunca tinha ido. Era mutio beco e muita viela, mó labirinto. No meio da "ruazinha", ele parou de frente pra uma porta de ferro e vidro e pegou o chaveiro dele do bolso. Tinha um milhão de chaves lá, Will selecionou uma vermelhinha e enfiou na fechadura, girando e abrindo a porta.

— Entra, rápido. — Mandou, olhando ao redor pra ver se não vinha ninguém. Ele me seguiu e trancou a porta pela parte de dentro.

Na mesma hora que eu fiquei fechada ali, comecei a tossir por causa da poeira em suspensão. Porra, tira muita, muita poeira ali. Quando ele se aproximou de um interruptor e acendeu as luzes, a gente só viu as crostas cinzas nos móveis. Discretamente ele abriu uma gretinha na janela que dava pro muro de outra casa, pra renovar o ar.

— Que isso? — Perguntei, esfregando a ponte do nariz que chegava a arder. O cheiro de mofo era horrível.

Olhei ao redor, notando os móveis de madeira meio puída e o sofá coberto com uma manta amarelada, que ficava de frente pra uma TV de tubo que parecia pré-histórica. Era uma casa toda mobiliada com o necessário, de maneira bem simples, mas que parecia estar fechada à séculos. Tipo... parada no tempo.

— Isso... — Ele começou a falar, testando a pia da cozinha. Saiu água quando ele abriu a torneira. — Era a casa da minha família.

— Da sua família com a Larissa? — Quis saber, disfarçando a tosse.

— Claro que não. — Passou por mim, desempenando a porta de correr de plástico do que parecia ser o banheiro. — Onde eu cresci, po.

Suspirei, entrando junto com ele no banheiro e fechando a porta. Era meio pequeno, mas dava pra nós dois se a gente se apertasse. Ele tirou a camisa e jogou do outro lado, eu fiz o mesmo com a shorts e o body que eu tava vestindo. Entrei no box primeiro, girando o registro e abrindo o chuveiro. A água tava fria, mas naquela altura do campeonato, eu nem me importei. Eu só queria tirar aquele vermelho imundo do meu corpo e limpar os meus machucados. Esfreguei os braços levemente com as mãos, sentindo a ardência por causa dos cortezinhos que tinha ali. Minhas mãos mesmo, tavam cheias deles. Coloquei meu corpo embaixo da água, tomando um cuidado especial com o machucado da testa. Barbás se aproximou, me ajudando com a tarefa de higienizar aquilo minimamente bem. Depois, trocamos de posição e ele ficou embaixo do chuveiro, limpando o próprio corpo.

Não era bem um banho, já que a gente não tinha sabonete pra se limpar decentemente, mas só a água passando pela gente já dava uma sensação de frescor inigualável. Me inclinei por cima dele pra ver os inchaço e os pontos roxos que ele tinha na função do ombro ao pescoço. Tava bem feio...

— O que foi isso? — Quis saber.

— Coronhada.

A gente terminou a ducha em silêncio e saímos do lado de fora, ainda molhados. Ele me chamou com a mão, para a escadinha que ficava no canto e levava para duas porta lado a lado no andar de cima. Ele entrou na primeira porta e revelou um quarto pequeno, com uma beliche e um gaveteiro bem grande, ao qual ele começou a revirar e pegou uma camisa preta que era do tamanho dele, junto com uma calça de moletom escura e uma cueca que estava em outro compartimento. Pra mim, ele me conseguiu uma camisa social branca que tava ali. Me serviu como as coisas dele sempre serviam, virou um vestido e as mangas eu enrolei até os cotovelos.

— Você não levou suas coisas quando se mudou? — Perguntei, estranhando.

— Só algumas. A maioria eu deixei aqui pra quando viesse visitar minha mãe. — Respondeu em um tom baixo, enquanto se vestia. — Quando eu sai daqui, eu comprei meu guarda roupa todo de novo, não tinha porque eu pegar as roupas que eu tinha quando era adolescente. — Falou, fechando as gavetas.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora