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— Tsc. — Neguei com a cabeça, levando uma mão à testa. Só Deus pra proteger o Pedrinho mesmo...

— E ai começou a desenrolar todo o resto.

— Qual o problema? Não tá sarando?

— Não é sarar, é que vazou o conteúdo do intestino, sacou? Ai inflamou uns negócios lá, causou infecção. — Explicou do jeito dela. — É grave.

— Eu me liguei. — Concordei. — Agora é sério, sem mentira, ele vai sair vivo dessa? — E me preparei pra resposta... Eu não queria nem pensar como seria se ele morresse. Ele era tão novo, tinha uma vida tão longa pela frente. Porra, ele merecia a chance de conhecer o mundo... eu queria levar ele pra nadar com as tartarugas.

— Não dá pra saber, Nina. Os médicos dizem pra gente ser otimista e só. — Disse.

— Tem alguma coisa que a gente possa fazer? — Eu sabia que provavelmente não tinha. Ele já tava num dos melhores hospitais do estado, que a conta ia sair uma fortuna do caralho. Se eles não conseguissem dar jeito, ninguém mais conseguiria.

— Não que tenham me falado. O doutor vem todo dia e diz que tá aumentando a dose do antibiótico e adicionando um monte de nome esquisito no soro. — Murmurou. — Tomara que ele fique bem. Tão novinho...

Concordei com a cabeça, sentada naquele chão gelado do hospital. Um tempo depois chegou a Larissa, com a cara inchada de chorar, e se juntou a gente. Nós três parecíamos muito infelizes ali... se pá porque a gente tava mesmo. Nenhuma de nós disse nada, não que nós duas e a Larica tivéssemos alguma intimidade ou nos gostássemos minimamente, mas o lance era: o filho dela tava numa cama de hospital. A nossa obrigação, independente do sentimento que alimentássemos por era, ela ter empatia pela dor que ela tava sentindo e que nós compartilhavamos um pedaço.

Uma ligação estranha aconteceu ali entre nós. Em algum momento, as nossas diferenças ficaram de lado e nós demos as mãos. Eu senti quando a Larica me apertou com força, enquanto as lágrimas rolavam pelo rosto dela. Como eu disse, era uma conexão esquisita, mas que, por um momento, funcionou.

Alguns minutos mais tarde, o toque do meu telefone veio pra atrapalhar o momento de sororidade feminina entre eu, a Shirley e a Larissa. Eu levantei rápido e me afastar alguns centímetros, encostando na outra parede, antes de atender o celular. No visor, era o número da Dalila. Tentei atender, mas a ligação tava péssima. Tipo... horrível. Tentamos contato várias vezes, mas era complicado. Desistimos depois de um tempo e eu fiquei com uma sensação ruim no peito. Sentei junto com as meninas de novo, mas não fiquei exatamente em paz. Tentei o número do Russo e depois o da Dalila de novo, os dois caiam na caixa postal.

Até ai ok. Era bastante normal ficar sem sinal ou com o celular desligado... Eu tentei colocar isso na minha cabeça, mas não dava. Simplesmente não dava. Se pá eu tava começando a ficar paranoica também... o fato é que eu simplesmente não consegui ficar em paz de jeito nenhum.

— Tô bolada com a ligação da minha irmã. — Avisei, levantando de uma vez. — Vou lá ver se tá tudo bem e amanhã eu volto pra ver como tá o Pedrinho.

— Avisa quando chegar, valeu? — Falou a Shirley e eu concordei com a cabeça, apertando a mão dela.

— Fiquem bem. — Disse e já ia saindo. Foi ai que um surto súbito de compaixão brotou no meu coração... — E Larissa... Se precisar de alguém pra conversar, pode me ligar a hora que tu quiser.

Não fiquei pra ouvir a resposta dela, só abri a porta das escadas e desci pro térreo. Chamei um Uber na porta do hospital pra Rocinha. Como eu sabia que o negócio tava brabo por lá, botei pra ele me deixar na Ápia que tava tudo certo. Fui no banco de trás tranquila, conversando um pouco com o motorista, e a viagem não demorou mais de 20 minutos. Quando chegamos no final do túnel Zuzu Angel, os estampidos dos tiros era praticamente tudo o que se podia ouvir.

Até ai ok também. Não era como se aquilo não acontecesse todo santo dia, o maior problema daquela situação era o motorista se recusar em me deixar até na Ápia e eu ter que subir até a Barcelos à pé.

— Moça, eu não vou subir não. — Avisou e eu já tinha meio que previsto isso.

— Tranquilo, pode me deixa ai no...

— Vou deixar a senhora no metrô ali e vou dar meia volta pela Niemeyer. — Me cortou. Era pior ainda... — Tá tendo operação e eu não posso ficar dando sopa por aqui não.

— Pera, operação? Tipo, operação policial? — Perguntei bobamente. Como assim tava tendo operação?

— É, falou no rádio aqui agora. A polícia tá entrando pra apartar a briga dos traficantes lá, dona. — Explicou e eu arregalei os olhos. — Por mim botava uma redoma lá e deixava eles se matarem a vontade, a polícia só entrava pra matar os que sobraram. Bandido bom é...

— Bandido morto. Tô sabendo. — Cortei ele, fechando a cara. — Me deixa ai mesmo que tá bom pra mim. — Disse meio ríspida, logo depois da saída do túnel. Paguei em dinheiro e meti o pé do carro antes que eu me estressasse com o cara.

Não que a culpa fosse dele. Eu sabia bem o que a população que morava no asfalto pensava do tráfico. Não era a porra da realidade deles, então, eles julgavam do jeito que bem entendiam as coisas que se passavam dentro de uma favela, mesmo sem nunca ter pisado lá. Envolvido nenhum era santo, muito pelo contrário, geralmente a gente tinha que fazer uns negócios que não são bem os mais certos, mas éramos gente também. Tudo o que nós todos queríamos era viver em paz no nosso lugar, ganhando nosso dinheiro, pelo resto da nossa vida. A gente sempre escolhia a paz... os outros é que escolhiam a guerra.

Como eu não tinha mais nenhuma pendência com a tranca, eu subi a favela bem no muidinho, mas sem medo de ser presa. Eu tava desarmada, não tinha nada que me ligasse ao tráfico aparente, e tava com meu documento no bolso. Resumindo, aos olhos da lei, eu estava 100%. Por isso, conforme eu subia a rua e chegava ao primeiro bloqueio policial, eu estava até que bem tranquila. Entreguei minha identidade, eles revistaram minha bolsa, avisei que tinha antecedente, mas tava no regime aberto, e que estava vindo do hospital e indo pra casa. Óbvio que por causa do 33 na minha ficha, eles me pertubaram o juízo. Me seguraram uns 20 minutos de tanta pergunta, tentando me fazer cair em contradição pra me levarem à delegacia pra averiguação. Felizmente eu já tava vacinada com aquela gente de farda, nem fodendo eu ia abrir brecha pra eles me foderem e me acusarem de um monte de coisas de novo.

Depois que eles cansaram e viram que não iam me pegar no pulo, eu fui liberada de subir a principal de novo e tive que ir a pé. Levei 40 minutos andando por aquela porra toda até chegar na rua da minha casa. Subi direto pro andar de cima e quando abri a porta, me deparei com a sala cheia de gente. Entre eles, meus dois, irmãos, o TK e o Barbás.

— O que que houve, gente?

— O Misael não deve ter molhado bem a mão do batalhão pra ficar fora daqui, deu nisso ai. — Russo explicou.

— Incompetente filho da puta. — Ralhou o Barbás, com a mão nos olhos e uma expressão corporal muito frustrada.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora