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Ele lavou o meu corpo todo. Tirando toda e qualquer mancha que tivesse ficado em mim. Antes, eu sentia o cheiro de terra, de chuva e o metálico do sangue, agora eu estava rodeada pelo aroma do shampoo de lavanda e o do sabonete amadeirado. Eu não falei nada, ele também não. No final, quando desligou o chuveiro, Barbás me colocou num roupão branco e enrolou uma toalha ao redor da própria cintura. A gente voltou juntos pro quarto e eu sentei na cama dele, puxando as pernas pra perto de mim e abraçando os meus joelhos. Fiquei olhando pra ele mexendo no próprio guarda-roupas.

— Onde ficou o meu fuzil? — Perguntei baixinho.

— Lá em baixo. O Parafal é teu? — Questionou, me olhando esquisito.

— É.

— Caburé te deu?

— Deu. — Respondi, suspirando pesado. — Por que ele me deu? Eu não vou usar pra nada, eu sou só avião da tua boca. A Xica não tem um.

— A Xica não passou na prova de fogo. — Ele falou, vestindo uma calça de moletom e jogando uma blusa de botões na minha direção.

— Que que é uma prova de fogo? — Perguntei, me movendo pra colocar a camisa estampada no meu corpo e abotoar ela.

— É quando tu mostra que tu é bom pra ter um fuzil. Tem nego que passa trocando tiro... tem gente que passa resgatando os parceiro numa situação merda. O TK ganhou o fuzil dele matando um verme que tava invadindo a favela. — Contou.

— E tu?

— Eu? Eu era vapor também. Na época eu bolei uma missão pra recuperar uma carga de fuzil que os alemão tinham roubado da gente. Deu certo e ai o dono confiou em mim. — Ele sentou de frente pra mim na cama e puxou minhas pernas pro colo dele.

— Tu já matou alguém? — Perguntei, mesmo já sabendo a resposta. Ele achou graça, dava pra ver na cara dele que era óbvio. — Tipo, não trocando tiro. Matar de matar mesmo.

— Trocar tiro não mata de matar? — Ele riu.

— Matar de executar, William.

— É isso o que tá te deixando de cara quente? Tu ter executado o cara?

— É diferente tu matar um cara na trocação, de tu enfiar uma bala na cabeça de um que tá ajoelhado na tua frente. — Expliquei, meu ponto, apoiando meu queixo nos joelhos. — Não foge da pergunta.

— Não tô fugindo, não tenho porque esconder, irmão. Porra, é claro que eu já executei gente. Ordem é ordem, Nina. E a ordem é clara, tá ali pra ser cumprida. Se o cara foi decretado, alguma coisa ele fez.

— Sei lá, foi foda pra mim. — Sussurrei. — Eu tive que tirar a cabeça dele, essa foi a pior parte.

— Não tinha ninguém pra fazer isso pra tu lá? Deixaram pra tu, que é menina, fazer essa merda?

— Só tinha o M7. Os outros ficaram no carro... e ele não quis fazer. Disse que eu era a frente.

— Foda. O Caburé que deve ter mandado ele te testar. Aquele pau no cu é assim... gosta de jogar com os outros.

Eu me mexi desconfortável e prendi o cabelo num coque acima da cabeça. Porra, eu gostava do Caburé, o cara tinha me ajudado muito, quando eu tava na merda e precisando de dinheiro, de advogado, de tudo. Agora, depois do que tinha rolado hoje, eu não sabia o quão abalado tinha ficado meu respeito por ele... eu só tinha certeza de uma coisa: eu odiava o gerente-geral dele.

— Que isso na sua cara? — Ele segurou meu queixo e virou meu rosto. — Tu brigou com alguém?

— Eu meio que lutei com o cara que eu tinha que passar. É... — Falei, envergonhada pra cacete com aquele fato. — Eu enrolei pra matar ele e o cara reagiu. Ele me deu um soco aqui perto do queixo, mas pegou erradão. Não foi nem forte e foi só isso também, ele era só um playboyzinho de merda. — Expliquei. — Que foi, ficou marcado?

— Ficou, mas não é no queixo não, Nina. É aqui na bochecha, quase chegando na sua orelha. — Ele me pegou pelo braço e me puxou pra frente do guarda-roupas dele, de maneira bem mais delicada da que ele normalmente fazia. Lá, de frente pro espelho enorme da porta central, ele mostrou o que ele tinha visto pra mim. Eu não tinha nem reparado naquelas marcas roxas antes... eram 3 pontos perto do meu ouvido, onde pegaram os dedos do M7 no tapa que ele me deu.

— Que foi isso, Nina? — Perguntou, com a testa franzida de novo. — Quem te bateu?

Eu fiquei um tempo sem falar nada, depois soltei o cabelo e tampei os pontos arroxeados.

— Foi nada não.

— Bora, Nina. Começa a falar. — Ele cruzou os braços e eu virei puta pra ele.

— Foi nada, mano. Deixa isso quieto, eu não quero falar sobre essa porra mais. — Desconversei, voltando a sentar na cama e sentindo um cansaço do caralho.

— Eu vou ficar pensando nessa porra, fica sabendo. — Falou com um tom irritado na voz. — Vou descobrir essa porra e vai ser pior.

— Não é nada, cara. Porra. — Reclamei, revirando os lençóis todos. O M7 era gerente-geral, o CR devia levar o cara em conta pra caralho, não queria ninguém ligado a mim arrumando problema com ele.

— Ninguém consegue esconder nada de mim não, Nina. — Tinha um "quê" de advertência na voz dele, que eu preferi ignorar.

— Mas tu esconde tua vida de todo mundo. Assim é fácil, Barbás. — O cansaço mental estava me consumindo, eu tava sem saco até pra discutir com ele sobre aquilo. Então, eu lentamente escorreguei por um sono que chegou rápido e pesado até mim. Eu precisava de descanso, mas aquelas imagens não saiam da minha mente.

William não veio pra cama comigo, ficou do outro lado do quarto, passando rádio e falando com os caras da 1, coisas eu não entendi e nem queria saber. Depois, ele desceu e eu rolei na cama por várias horas até desistir de dormir. Desci as escadas e liguei a TV, me jogando no sofá. Passei os canais até os dedos doerem. Parei no Discovery e fiquei vendo uns documentários sobre Machu Picchu pra distrair minha mente. Eu não tava realmente interessada naquilo, mas era bom pra passar o tempo.

— Caralho, que bagulho aleatório. — Ele falou, olhando pra TV quando chegou na sala. — Tu não ia dormir?

— Não tô conseguindo. Vem ver filme comigo. — Pedi, chamando com a mão.

— Tô ocupado. — Falou.

— Se ocupa aqui, chega ai. — Ri, trocando pra algum telecine. — Tá passando Busca Implacável.

Ele realmente veio, parecia não estar nem ai pro filme, mas pelo menos ficou ali no sofá comigo. A gente tava em um silêncio puta confortável... acho que só a presença dele já me deixava bem melhor. Eu não sei como, mas a gente acabou apagando ali na sala mesmo um tempo depois, numas posições esquisitas.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora