24

3.4K 258 10
                                    


— Só queria entender quem é tu, William. — Falei de uma vez, marcando o nome dele de maneira consciente. — Saber se foi tão ruim pra você quanto tá sendo pra mim.

Ele não respondeu nada, mas sentou do meu lado e ficou olhando pra mim.

— Pergunta ai. — Falou, travando o fuzil e colocando ele escorado na lona. — O que tu quer saber?

— Por que você é tão grosso assim comigo? — Perguntei com um quê de diversão na voz.

— Não é só contigo, eu sou assim. E eu não sou grosso, porra. Eu só sou direto. — Se justificou.

— Tá vendo? Você fala agressivo.

— Para de show. — Ele falou sério, como sempre, mas tinha algo diferente no tom de voz. — Tu é que sensível.

— Certeza que não. — Passei a mão no rosto, sentindo o sangue seco da minha mão e da bochecha descascarem por causa do atrito. — Ai, meu Deus.

Comecei a esfregar as mãos uma nas outras, pra tirar aquela coisa mim. O grosso saiu, mas sobrou uma parte ainda, que parecia fincando na minha pele.

— Se tu continuar, vai machucar tudo. Fica namoral ai.

— Eu não quero ficar com isso em mim. — Reclamei, meio chorosa. — Me lembra o segurança. Ele era tão novinho, Barbás. Eu tenho certeza que aqueles filhos da puta não prestaram socorro pra ele.

— Não vai ser o primeiro que tu vai ver morrer. É bom tu saber disso... — Alertou, mexendo no amontoado de coisa que tinha ali do meu lado e achando uma caneca de alumínio. — Segura ai. — Falou, levantando com o lampião e sumindo do lado de fora. No primeiro minuto eu fiquei esperando ele voltar, no segundo eu já tava tiltada. Eu não queria ficar aqui sozinha, porra. Tava pra chamar por ele, quando ele resolveu voltar.

— Onde cê tava? — Perguntei assim que ele voltou a sentar do meu lado. A caneca tava cheia, parecia água.

— Ali em cima tem um cano que os irmãos puxaram da nascente de lá de cima. — Explicou tranquilo, jogando um pouco no líquido na própria mão. — Agora fica quieta ai.

— O que tu tá fazendo? — Me remexi, olhando desconfiada pra ele.

Com uma das mãos, ele tirou o meu braço da frente e a outra, que estava molhada, ele passou no meu rosto. Eu demorei pra entender exatamente o que ele tava fazendo, mas quando eu finalmente compreendi, foi ai que eu fiquei mais confusa ainda. Eu realmente não tava esperando um gesto daquele vindo dele... Era tão delicado, tão cuidadoso (mesmo com o jeito bruto dele), que eu fiquei puta surpresa. Até esqueci como fazia pra respirar.

— O quê? — Repeti baixinho.

— Tu não queria tirar o sangue? Tô tirando pra você.

— Mas por quê? — Estranhei, olhando desconfiada pra ele.

— Tu prefere que eu não faça nada? — Mais uma resposta atravessada. A essa altura do campeonato, eu já tava me acostumando. Ele sempre tava na defensiva.

— Grosso. — Fechei a cara. Ele pegou meu punho direito e derramou água ali, esfregando pra tirar o restante do líquido vermelho já seco que tinha ali, ai fez o mesmo com o esquerdo.

— Valeu. — Sussurrei pra ele. Por um momento, eu fiquei encantada pelo cuidado. Agora sem aquela mancha vermelha nas minhas mãos, eu me sentia até mais tranquilo, mais leve.

— Como você me achou? — Perguntei baixinho pra ele, que continuava a me encarar com os olhos escuros, agora de volta na posição em que estava anteriormente.

— Na real, foi tu quem me achou. Eu tava em reunião com os parças ali quando a polícia entrou. Na hora que a gente foi sair pra meter o pé, eu te vi com aquele fodido. Fiquei esperando a hora certa pra meter bala.

— Por que a gente vive se esbarrando por ai? — Perguntei mesmo sabendo que nem ele teria a resposta. Felizmente ele tinha me dado passe livre pra questionar o que eu quisesse, eu ia aproveitar.

Ele negou com a cabeça, se encostando na lona que ficava colada na encosta, assim relaxando a postura. Posicionou a arma nas mãos e ficou olhando ora pro breu lá fora, ora pra mim, sem dizer nada. Eu mesmo me distraí fazendo a mesma coisa, com exceção de um detalhe: eu estava olhando pra ele o tempo todo.

Deitei de lado, poupando o lado machucado do contato com o chão. Assim, ficando imóvel naquela posição, eu quase não sentia mais a dor. Olhando pro corpo definido e repleto de tatuagens que ele tinha, lentamente o sono foi me envolvendo e me embalando de um jeito tão confortável que eu quase me esqueci onde eu tava. Não estava conseguindo adormecer completamente, era mais algo como um cochilo de fim de tarde no sofá duro e pequeno da sala. Sempre que eu conseguia focar meus olhos no Barbás, por outro lado, entre um cochilo e outro, ele estava sempre com os olhos aberto e em alerta.

— Você não vem? Dormir? — Sussurrei com a voz sonolenta pra ele.

— Falcão não dorme, Nina. — Respondeu. Eu não compreendo o que ele quis dizer a primeira vista, mas foi algo intenso de se falar... principalmente porque ele tinha dito o meu apelido da mesma forma como os meus amigos faziam. Aquela tinha sido a primeira vez.


[...]


A luz do sol bateu contra o meu rosto nos primeiros raios do dia, me acordando do 10° cochilo. A noite havia passado e eu tinha sobrevivido à ela. Barbás não estava mais do meu lado, mas lá fora, falando algo que eu não consegui entender no rádio.

— Acorda ai. — Ele falou pra mim, voltando pro lugar onde a gente estava. — A gente já pode descer, a favela tá limpa.

— Eu já tô acordada. — Murmurei, virando de barriga pra cima de novo e apoiando os cotovelos no chão, numa tentativa de levantar e não mexer muito a barriga. Consegui sentar com sucesso, mas me faltava impulso pra levantar. A ajuda que faltava, eu recebi do William, que me sustentou durante um tempo para que eu conseguisse me erguer. Meu corpo ainda doía, mas agora a dor estava bem localizada, ao menos. Não era como ontem em que tudo parecia estar amassado em mim.

Barbás terminou de dar uma ajeitada na coisas, apagou o lampião e nós fizemos nossa caminhada de volta até a favela. Fomos num ritmo lento (talvez ele tivesse respeitando minha limitação) e no mais absoluto silêncio. Chegamos na entrada da mata, pegamos a moto e, como ontem, foi uma merda pra subir.

— Quer ir pra UPA ou tá de boa? — Perguntou, antes de dar partida.

— Eu tô acabada, eu só quero ir pra casa, tomar um banho e dormir. — Falei depois de um suspiro pesado.

— Onde fica tua casa?

— Sabe onde é a casa do Russo?

— Sei. — Disse, acelerando a moto pela rampa da Vila Verde com tudo. A gente desceu até a rua principal, a Estrada da Gávea, e subimos ela até a Dioneia, onde ficava a casa em que eu vivia. Barbás parou na frenre, chamou uma, duas, três vezes, bateu no portão e tocou a campainha umas mil outras vezes. Nada de ninguém atender.

— Eles devem ter metido o pé daqui, não chegaram até agora. Tu não tem a chave não? — Perguntou e eu neguei com a cabeça. Eu não tinha tido nem tempo de pensar nisso.

— Cacete e agora? — Me encostei no muro do quintal que Xica e o Russo dividiam. Eu estava fraca e com muito sono, se eles não chegassem logo, eu ia ter que dormir ali mesmo.

— Sobe ai, de novo. Vou te levar pra um lugar onde tu vai poder descansar. — Disse pra mim, já subindo de novo na moto. Como tudo o que eu mais queria era descansar e fazer um curativo nesses hematomas, eu nem pensei duas vezes ou fiz perguntas antes de seguir ele.

O que eu estava esperando era que ele fosse me levar pra UPA e eu já tava torcendo pra ter alguma maca vaga na enfermaria. Nunca, nem nos meus melhores sonhos, eu conseguiria imaginar que ele pararia em frente há uma casa, muitas ruas acima. A casa dele.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora