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As duas semanas seguintes passaram num piscar de olhos, e a tensão na Rocinha cresceu com a mesma rapidez. Os tiroteios todos os dias estavam chamando a atenção da televisão e da polícia. Os moradores tavam sempre assustados e correndo pelas ruas, o comércio começou a fechar mais cedo, alguns nem abriam. As ruas começaram a ficar vazias na maior parte do dia, o que era muito estranho pra Rocinha, que parecia estar sempre pulsando de tanta gente dividindo o mesmo espaço. Exceto nas horas de saída e chegada dos moradores do trabalho, tudo parecia as moscas. Até as escolas paravam quando as coisas ficavam piores.

A passividade dos homens do Misael acabou quando tiramos a minhas mãe deles, que pareciam ter começado a levar a gente à sério. De longe, a gente não sabia o que aquilo significava, só que se desse mole na linha de frente, ia virar saudade. Quem desse muito a cara, nenhum dos dois lados deixava passar. Os mortos começaram a aumentar e o terror na favela também. Como começamos a perder alguns dos nossos, Misael começou a forçar as nossas linhas e ai... ai nós fomos pra guerra de verdade. Era tiro toda hora, o tempo todo. O nosso esquema de rodízio teve que ficar mais sofisticado, mal tínhamos tempo pra comer e o período que a gente tinha pra ir pra casa dormir diminuiu pra cacete.

Com alguns vacilos do Misael, que parecia desesperado pra forçar pra cima de gente, nós acabamos conseguindo algumas vitórias pra cima dele e conquistando mais algumas regiões da favela. Ali era assim: a briga era feia por casa rua, cada casa, casa esquina. Ninguém queria ceder nem 1 cm, porque a derrota significava uma morte brutal na mão de gente filha da puta.

A verdade é que dia após dia, ficava mais claro que tinha gente melhor que o M7 pra comandar a favela e, por isso, ele tava tendo de recuar algumas várias vezes pro grupo que não reconhecia o poder dele. Do nosso lado, entre os nossos quatro líderes, ficava claro que um se sobressaia: Barbás. O pensamento rápido e preciso dele nos deixava na vantagem em um monte de situações. Ele parecia sempre à frente dos nossos inimigos e isso, lentamente, ia colocando a corda no pescoço do Misael.

Pelas pequenas vitórias que nós íamos conquistando, fazendo eles retrocederem algumas vezes, ficou claro que, mais cedo ou mais tarde, o M7 ia acabar rodando se não retomasse o controle da situação. Tudo estaria bem encaminhado se não fosse por um detalhe simples: a sombra de um apoio por parte do PPG pairava em cima de todo mundo. Essa parte era responsabilidade minha tentar resolver, mas a dona Cláudia simplesmente não conseguia o contato do Carlos, nenhum dos números dela souberam informar por onde ele andava e qual o número atual. Conforme o tempo passava, a pressão em cima de mim ia aumentando e minha paciência acabando. Pelo que a gente sabia, ele só podia estar em uma das favelas dele, era provável que estivesse em uma da Zona Sul, era onde ele tinha estado nos últimos meses. A base dele ficava no pavão... não devia ser tão difícil chegar nele se nós estávamos sabendo de tudo isso, certo? Mas era...

Além de tudo isso, ainda tinha o Pedro. Xica continuava lá com ele, Larissa ia lá algumas vezes na semana ver o filho, ela também tinha um histórico na polícia, mas já respondia em liberdade como eu, então já era uma situação melhor que a do Barbás, que era procurado. Eu comecei a ir também, já que precisavam da Larica na favela pra alguma coisa. Eu nem reclamava, era uma maneira de escapar pra longe da Rocinha por algumas horas e ver o mundo lá fora. Era bom respirar ar fresco, que não tivesse cheiro de pólvora e morte, por um tempinho.

Nesse momento eu tava ali, no pé da cama dele, olhando uma última vez pro seu rostinho infantil. Na UTI, ele estava em coma induzido por causa dos vários problemas em consequência do tiro. A pele amarelada já era um indicativo do estado grave do menino. Fiz um carinho no pé dele, mentalizando uma oração antes de deixar o quarto dele. Naquelas semanas, eu, Xica e Larissa estavamos filtrando as informações antes de passar pro Barbás, minimizando os problemas, contando o necessário somente... Mas aquilo, aquilo não dava pra esconder. Pedro era um lutadorzinho muito bravo, sabia que ele estava lutando muito pela vida dele ali, eu não sabia até onde era justo eu esconder isso do pai dele em nome da sua sanidade mental.

Sai pro corredor, onde a Xica já aguardava. Ela tinha ido em casa, tomar um banho e buscar novas roupas. Sentei com ela no chão no hospital e nós duas nos olhamos com preocupação.

— A Larissa tá em negação. — Contou. — Ela vem, chora e diz que vem buscar o Pedro no dia seguinte. Depois discute com o médico e quase sempre é retirada pelos seguranças.

— Caralho. — Engoli em seco, segurando o choro dentro de mim. Eu me sentia muito mal por ela, se eu que tinha convivido apenas alguns meses com o menino estava sendo horrível, eu nem podia imaginar como era pra ela que era mãe e tinha parido ele. A verdade é que o Pedrinho era muito especial, ele não merecia nada daquilo... Mais que isso, ele era uma criança inocente e agora tava numa cama de hospital se agarrando à vida com unhas e dentes. Aquilo era muito injusto... Foi ali, naquele exato momento, que eu reconheci a crueldade do mundo. No fim do dia, a justiça não passava de um devaneio coletivo, um sopro de esperança pra um povo sofrido pra caralho, mas que não passava de uma ilusão. O mundo era uma selva, onde as coisas se resolviam da maneira como sempre foram: na base carnificina, cobrando cada olho e cada dente. O nosso mundo era assim, pelo menos. O favelado sempre tava exposto pra sofrer aquilo que o sistema tem de pior pra oferecer, nós éramos a linha de frente.

— Tá foda, Nina.

— Eu vi. — Concordei com a cabeça, olhando pra luz no teto. — Xica, fala com sinceridade, o que o Pedro tem de verdade? Por que ele tá amarelo, e ainda não saiu da UTI depois de todo esse tempo? Sem minimizar a informação, pra mim você pode falar.

— Ah, cara. — Ele suspirou pesado e pressionou os lábios uns contra os outros. — Ele teve bastante complicação por causa do tiro. A bala não alojou, não bateu em nenhum osso e isso é bom pra ele, se tivesse pegado um pouco mais acima na costela, podia ter sido mais grave. O doutor disse que provavelmente ia perfurar o pulmão e ele teria morrido na hora. — Explicou e eu soube que ela tava fazendo exatamente o que eu tinha pedido pra não fazer.

— Tá, não pegou na costela, mas e ai? Pegou onde?

— Atravessou a barriga, Nina. O médico disse que furou o intestino, sabe qual é?

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora