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A gente se entreolhou uma última vez, com um aceno firme de cabeça, nós começamos a caminhada até a fronteira. O meu grupo ficou de ir por dentro da região Rua 4, ali por perto do 11 e do Lajão. Era uma área que o Barbás achava fácil de trocar tiro vindo debaixo, pela maioria das casas não serem tão altas e terem a laje aberta, sem meias paredes que pudesse ocultar alguém. Além disso, ali era perto de onde iam tirar a minha família, então, a gente podia ficar de olho neles.

A verdade é que todos nós ali estávamos tentando manter o controle sobre coisas que a gente sabia que não conseguiria ter nas nossas mãos. Dali pra frente, todos nós estaríamos nas mãos do destino e ele ia seguir na direção que achasse melhor. Mesmo assim, a sensação de que estava "tudo sob controle" nos trazia certo conforto ao coração. Era uma ilusão que valia a pena viver... mesmo assim, não passava de uma fantasia. Soubemos disso quando o primeiro estrondo de tiro ecoou na nossa direção e avistamos os "amigos da fronteira", que saíram das suas posições ocultas e colocaram a cara pra dar tiro nos homens do outro lado, abrindo espaço pra nós, que tínhamos acabado de chegar, avançar de verdade por dentro das linhas deles.

Dali, entrei no modo automático, limpando a mente de qualquer coisa que pudesse tirar a minha concentração. Olhos no prêmio, Marina. Foco da missão. Os ouvidos buscavam tentar localizar a origem dos barulhos de disparos e identificar o atirador, enquanto os olhos faziam um check-up em tudo ao redor. Meus dedos já pareciam agir quase que instintivamente, pressionando e soltando o gatilho em um ritmo frenético. Eu sentia calor, que deixava minhas bochechas quentes, enquanto eu mirava e atirava em quase tudo o que se mexia depois de um certo ponto.

Todos nós. Era fácil seguir sob o comando do Will, ele parecia sempre saber o que fazer e todos os outros escutavam o que ele dizia sem contestar. Com uma só cabeça, era simples manter a ordem e o foco. Ele ia na frente e nos dava ordem simples sobre posicionamento, enquanto todos nós trocavamos informação sobre onde estavam os nossos inimigos. A facilitação no grupo era fundamental pra gente fazer o nosso trabalho direito, sempre que a gente avistava um indivíduo, gritavamos a localização para os outros e todo mundo ficava sabendo. Assim, ganhamos território rápido e, em pouquíssimo tempo, tínhamos fechado o Lajão e a Rua 4, metade de nós foi ajudar o pessoal da Rua 2, que tava encontrando mais resistência lá, a outra metade ficou pra guardar posição e se comunicar com os outros.

Eu fiquei pra dar uma patrulhada nas vielas dali, querendo ver se achava alguém perdido ou escondido que não fosse dos nossos. Como tava tudo limpo, fui ajudar a coletar os armamentos dos que tinham caído. Voltei pra perto do Barbás, que tava com o rádio na mão, cheia e fuzil nas costas. Joguei tudo nos pés dele, apoiando as mãos nos joelhos. Tulio tava do lado dele, sempre com a arma em punho e em alerta.

— E ai? Tudo certo com os outros? — Perguntei.

— Parece que sim. Tô esperando confirmarem comigo aqui pra gente continuar a subir. — Concordou com a cabeça. Mais um bip chegou pra ele, a voz mecanizada do outro lado falou uma coisa ou outra que eu não entendi. Enquanto isso, os nossos homens iam voltando e avisando que as coisas tinham dado certo da 2, voltando a se reunir em um ponto comum. Em outros pontos da favela, ainda se ouviam muitos tiros, mas ali estava tudo em silêncio. A rapidez com que a gente tomou o meio da favela me fez ficar com a pulga atrás da orelha. Tinha sido fácil até... fácil demais.

— Tão trazendo sua família já. — Barbás comentou uns minutos depois, contando quantos homens estavam ali. Todos, constatamos. Nenhuma baixa. — Falaram no rádio aqui agora.

— Já saíram de lá? Tudo certo no caminho?

— Já. Vamo subir ali pra 3 pra abrir uma margem maior da saída da Cachopa, vem. — Falou, assoviando pra chamar a atenção dos outros. — Atividade, rapaziada. Tem cara ali na frente, a nossa saída da principal é agora. Ponto disputado, então abre o olho pra ninguém virar saudade. Olho nas lajes, lá é muito mais fechado que aqui. — Falou, segurando a postura da arma e tomando a dianteira de novo. Fomos atrás.

Como da outra vez, a gente se posicionou nas bordas e continuamos a mesma tática de antes. Tava dando certo, mas conforme a curva da Nova se acentuava pra Gávea*, a coisa ficava mais difícil. Eu tinha a impressão que, quanto mais a gente avançava, mais gente tinha pra combater a gente. O ritmo com que a gente avançava diminuiu e a bala comeu firme. De qualquer maneira, a gente tinha que pegar aquela entrada pra principal de qualquer jeito, então, a única coisa que restava era furar toda a parede de casas onde eles estavam se escondendo.

Ali sim a gente começou a ter baixa. Do meu lado, que tava na esquina de uma viela tomando posição, um cara que eu só conhecia de vista, mas sabia que era da favela, tomou um tiro no colo, quase no pescoço. O impacto jogou ele pra trás e ali mesmo ele ficou. Eu até ia ir ver se ainda tinha alguma coisa pra fazer por ele, mas simplesmente não dava, já que ele tinha ficado bem na linha de tiro. Eles tinham uma posição boa, acima de nós, dando um visão privilegiada da rua, o que meio que fodia a gente legal. A nossa sorte era que a nossa quantidade de homem era visivelmente superior. Dali de onde eu tava, dava pra saber bem onde eles tavam. Todo mundo em lugar alto, em laje e varanda das casas da curva, como o Barbás já tinha previsto. Fiquei ali e esperei eles desviarem o foco do lugar onde eu tava, pra conseguir atravessar correndo pro lado onde tava o Will. No meu encalço, eu ouvi os estampidos no asfalto.

— Barbás, dá pra mandar ninguém por aqui não? — Apontei pra rua onde ele tava se protegendo. — Aqui por trás não? Dar a volta e sair ali colado nos prédio onde eles tão. De cima pra baixo ali, dá pra estragar eles legal. — Mostrei minha lógica.

Ele deu uma olhada rápida, confirmando as coisas que eu tinha dito, depois olhou pra viela.

— Dá. — Ele concordou. — É uma boa pra abrir a guarda deles, eles vão ter que escolher em quem vão virar. — E fez o sinal pros homens que tavam próximos, explicando o que eu tinha proposto. A gente debateu como fazer rapidinho ali e tava decretado, é o que ia rolar.

— Beleza, eu vou. — E fui seguindo os caras que tavam indo pra dentro da rua, executar o plano.

— Vai o caralho. — Ele segurou meu braço, me atrasando. Os outros pararam e olharam pra trás. — Tá maluca, caralho?

— Me solta, mano. — Agarrei a mão dele. — A ideia foi minha, eu vou lá ajudar a fazer dar certo.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora