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Acabou o jornal, começou a novela e nós dois nos distraímos, acabamos cochilando. Um tempo depois, o Barbás levantou de repente, olhando o redor como se tivesse procurando por alguma coisa. Eu assustei na hora e tateei o chão ao meu lado procurando a pistola, como não achei, eu dei um rolamento pro chão pra procurar melhor. Depois, olhando um pouco melhor para a porta, janela e arredores, notei que não tinha nada de errado.

— Que houve? — Perguntei, notando um olhar assustado nele. Que estranho...

— Nada, eu só... Sei lá, só lembrei de uns bagulhos de quando eu era moleque. Volta pra cá, vem. — Chamou, me dando a mão.

Sentei de novo no sofá e o observei, captando um olhar meio melancólico no rosto dele.

— Fala comigo, Barbás, o que que houve? — Insisti, desviando os olhos dele da novela pra mim. — O que te tiltou?

— Eu só tava lembrando que quando eu era moleque, meu pai e minha mãe costumavam ficar assim aqui no sofá. — Falou, arrumando a postura e cruzando as pernas.

— E por que isso te assustou? — Ri, abraçando meus joelhos e encostando nele. — Não é uma coisa boa?

— Não. — Respondeu sério. Não disse nada, mas continuei olhando pra ele. — Meu pai não era bom pra minha mãe. — Explicou.

— Poxa... — Suspirei. É... ele não devia ter lembranças daquela casa. — Por isso as coisas de todo mundo tá aqui? Tipo, sua mãe, seu irmão, você... A casa parece estar fechada há muito tempo e tem tudo aqui ainda. Geralmente as pessoas se mudam e levam as coisas, né?

— É... — Ele concordou com a cabeça. — Ninguém mais quis ficar nessa casa depois. — Falou mais pra si mesmo do que pra mim. — E ficou assim desse jeito. Sei lá, deve fazer uns 5 anos que eu não venho aqui... Antes eu vinha ver minha mãe, depois ela sumiu também.

Pressionei os lábios uns contra os outros, passando a mão no braço dele. Ele tava olhando pensativo ao redor, eu quase conseguia sentir sua melancolia. Encostei a cabeça no ombro dele e fiquei ali, só orbitando aquele espaço que era puramente dele.

— Eu não sirvo pra ter uma família, Nina. Eu tenho um talento pra destruir meu lar que tu não tem nem ideia.

— Bobeira, po. — Disse, passando os dois braços pelo corpo dele. — Todo mundo erra.

Ele riu de novo e negou com a cabeça, não era uma risada de humor... talvez de deboche, desgosto.

— Eu matei meu pai, Nina. — Falou, sem me olhar. — Nessa sala aqui. Tu não queria saber dele? Então... — Ele deu de ombros.

Foi meio um choque pra mim a confissão dele. Eu me desvencilhei dele, querendo lhe dar espaço. Ajeitei minha postura e sentei que nem ele estava, com as duas pernas cruzadas sobre o sofá. Mantive, porém, minha mão na dele. Caralho, eu nunca tinha imaginado um negócio desses, mas explicava muita coisa sobre aquele lugar e sobre ele. Eu não conseguia nem imaginar o que era o peso de assassinar um pai... eu via isso pesando nas costas dele agora. Mais que isso, os motivos que o tinha levado a isso...

— E por que você fez isso? — Perguntei, apertando levemente os dedos dele. — Ele batia em você?

— Também. Mais na minha mãe... Batia muito nela. — Ele negou com a cabeça, mordendo o lábio inferior com força. — Eu e meu irmão crescemos vendo essa porra, com medo dele. — Ia apertando o braço dele, tentando lhe oferecer algum consolo. — Por isso eu não bato em mulher nenhuma, não quero ser que nem ele. — Engoliu em seco.

E isso fazia dele diferente. Todo mundo sabia como era ser mulher de bandido na favela. Se fizesse merda, apanhava pra entrar na linha. Era comum no nosso convívio, no nosso meio. Não era todos que faziam, mas a maioria era assim. A verdade era essa... nua, crua. Óbvio que não era um espancamento pra mandar pro hospital, mas não deixava de ser um abuso. É um bagulho que eu nunca aceitaria, na verdade, mulher nenhuma devia aceitar, mas aqui o dinheiro e uma "bancada" costuma ser o mais importante, dignidade fica de lado.

— Ela sempre andava machucada naquela época. A gente também, às vezes. — Ele relembrou, com o rosto retorcido em uma expressão esquisita. — Quando eu virei falcão, ele descobriu e culpou minha mãe, claro. Quis me bater por querer ser bandido, ela entrou na frente pra me defender e ele... — Fechou o olho, esfregando a testa. — Eu achei que ele fosse matar minha mãe aquele dia. Eu não ia deixar, irmão. Peguei o três-oitão que eu tinha e olhei no olho dele do pé daquela escada ali. Descarreguei o tambor inteiro nele. — Narrou e eu notei como ele revivia os fatos na própria mente. — Eu tinha uns 15 anos, assim... Foi a primeira pessoa que eu matei.

— Que merda. — Sussurrei. — Criança nenhuma devia passar por isso.

— Eu não sou o único nessa favela aqui não. Esse lugar aqui é uma pilha de tragédia de gente pobre... — Ele negou com a cabeça. — Foi ele quem me fez desse jeito. Se hoje eu sou assim é por culpa dele. — A mandíbula trancada deixava claro a raiva efervescente nele.

— Vocês sairam daqui depois disso?

— Essa casa virou um inferno depois disso. Meu irmão nunca me perdoou nessa porra, o velho era herói dele, ele não tava nem ai se ele quase matava minha mãe na porrada. Minha mãe mesmo não aguentou mais viver comigo e nem com ele... Eu fiquei ruim depois disso também, me joguei de vez na vida errada. E ai eu saí daqui. — Ele deu de ombros. — Minha família se desfez nessa porra, por minha causa.

Eu não tinha o que falar, na verdade, eu tava muda. Caralho... Eu só conseguia me sentir muito mal por ele. Muito mal mesmo. Eu continuava com as minhas mãos nele, tentando encontrar um espaço na sua alma.

— Depois veio a Larissa. A gente namorou, eu achava ela foda, uma mulher diferente das outras, porra, eu amei ela pra caralho. Casamo, tivemos um filho, mas eu não sabia ser um homem de família. A gente brigava a porra do tempo todo, depois de um tempo... ficou num nível que não dava, irmão, eu e ela ia acabar se matando e isso tudo na frente do meu filho. Eu não ia deixar meu filho crescer no inferno que eu cresci, e ai, por minha casa minha família se desfez de novo. Acho que ela nunca me perdoou nessa porra. — Ele deslizou a mão pelo rosto longamente, parando na boca. A gente ficou em silêncio por uns minutos e eu notei como o causo com os pais parecia ser uma marca de ferro na alma dele.

— Quer tentar de novo? — Sussurrei pra ele e foi a única coisa que eu consegui dizer. Ele me olhou como se eu fosse um ET... ou como se tivesse debochando dele.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora