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Por puro instinto de sobrevivência, eu continuei e rasguei toda a carne ao redor do osso do pescoço, mas esse eu não consegui cortar de jeito nenhum.

— Não dá.

— Mete a faca entre um osso e outro da coluna e puxa pro outro lado. Bora. — Falou, aproximando ainda mais a lanterna. Eu fiz o que ele mandou e enfiei a mão no corte que eu tinha feito, sentindo onde ficava a divisão entre uma vértebra e outra. Cravei a faca bem no meiozinho, fazendo força pra dentro. Ai, eu segurei os cabelos ensopados dele com uma mão, puxando a cabeça na direção contrária, enquanto continuava forçando a faca. Deu um impulso forte e a cabeça finalmente se separou do tronco. Misael me jogou um saco preto, ao qual eu abri e coloquei o órgão lá dentro.

Me levantei pra ir embora, me sentindo quase morta por dentro. Completamente apática depois de tudo o que tinha rolado. M7 pegou um isqueiro e colocou fogo no restante no corpo, me pegando pelo braço e quase me arrastando pelo caminho de volta. Eu me sentia mole, me sentia vazia... A faca eu joguei dentro do saco, que eu segurava com força junto à mim.

Pelo meu estado, o Misael teve que checar se não vinha ninguém, antes de me deixar sair da mata e ir pra dentro do nosso carro. Quando subi no Fusion de novo, eu joguei a cabeça no banco e me encolhi num canto, olhando para o vidro negro enquanto o gerente dirigia de volta para a favela. Marciano até tentou falar comigo, me fazer um carinho ou me consolar de alguma maneira, mas eu nem dei atenção. Eu só queria ficar um tempo quieta na minha, pra digerir tudo aquilo. Com o tempo, a calma voltou a me abraçar. Eu tinha sobrevivido à aquela porra, tinha passado por toda aquela bosta, estava viva e com a porra da encomenda do Caburé do meu lado. Eu não tinha falhado, mas me sentia quebrada em muito pedaços. A tensão, a pressão que a situação fez em mim e na minha cabeça, me deu uma puta de uma canseira mental. As minhas lágrimas secaram e os tremores no corpo pararam nos minutos que se seguiram. Quando a gente chegou até a Rocinha, eu estava plena e com uma raiva borbulhante dentro de mim. M7 cortou o caminho pelas ruas secundárias, já que a principal estaria começando a lotar nessa hora, com uma massa de gente à caminho do baile. Paramos em frente ao escritório do CR, na Rua 1. Do lado de fora, estavam reunidos todos os fortes da favelas. Todos os gerentes das bocas do Caburé estavam parados ali, esperando junto com ele.

Márcio passou a mão no meu rosto, pra tentar limpar um pouco daquele sangue e terra grudados ali, mas não tinha como melhorar muita coisa. Eu precisaria de um banho pra me lavar de toda aquela merda. Ele passou os fuzis que estavam ali atrás do banco para cada um dos ocupantes do carro, me dando o meu por último. Aquele que o Caburé tinha me dado... Passei o cordão pelo meu pescoço e peguei o saco preto, saindo do automóvel de cara fechada. Meu maxilar estava travado de tanta força que eu fazia pra me manter forte. Fui direto para o dono do morro, que sorriu quando me viu. Atrás de mim, eu não consegui ignorar o olhar chocado que o Barbás e o Russo tinham em cima de mim.

Levei o saco até o Caburé, que verificou com um sorriso mórbido no rosto. Depois foi até o carro e tirou o velho de lá de dentro, mandando levar ele pra algum lugar que eu não prestei a atenção. Eu tava meio alheia a tudo o que tava rolando ao redor, eu só queria ficar sozinha, quieta na minha, porra. Caburé falou alguma coisa pros caras que tavam reunidos ali e eu fiquei parada próxima do carro, ouvindo as risadas e comemorações de alguns deles. Dava pra sentir o grave do paredão ali, em ondas vibrantes como a felicidade e energia daquele tipo de festa. Era um contraste do caralho...

Eu não notei que o Caburé tinha vindo falar comigo até ele estar quase do meu lado já.

— Que que fizeram contigo, hein indiazinha? — Ele falou com um bom humor idiota estampado na cara dele. — Mas eu sabia que tu ia conseguir, sempre botei fé.

— Tô de boa. — Menti, afastando a mão dele de mim. — Tá feito? Tô afim de ir pra casa.

— Tá feito, po. E muito bem feito. Segunda tu passa aqui no escritório pra receber, suave?

Eu concordei com a cabeça, já virando de costas pra ir embora, quando ele me chamou de novo...

— Tu tem futuro, mina. Geral consegue ver isso agora. — Falou, acendendo mais um baseado.

— E cê me quis por isso? Pra ver se eu tinha futuro ou não? — Perguntei, com uma indignação mal disfarçada na voz.

— Também. — CR de um risinho de canto. — Quer que eu mande alguém te deixar em casa?

— Não, já disse que tô de boa.

— Então suave. — Ele deu as costas pra mim, voltando pra perto dos seguranças dele. — Vô te esperar segunda, hein?

Eu queria voar nele. Queria voar no homem do lado dele também, o filho da puta do M7. Odiava as meias respostas, meias verdades que aqueles corno no caralho jogava pra mim. Ele nem pra me dizer o porquê, o motivo de eu ter feito aquilo... caralho, que ódio.

Desci a rua andando apressada, com as mãos fechadas em punho. Eu não tava pensado direito, até porque eu não ia conseguir pegar um moto-táxi àquela hora e naquele estado. Mano... dali da Rua 1 até a Cachopa era um mundo de distância. Eu só fui andando, até que na esquina, o Russo me alcançou. Ele agarrou o meu pulso e me olhou de cima abaixo, antes de me dar um abraço tão forte que quase me desmontou.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora